Névoa

A Soldada do Fim do Mundo

"O que acabou de acontecer?", eu perguntei, após parar o carro. Eu havia acabado de dirigir por alguns minutos, o suficiente para nos distanciarmos do Treze, de uma forma automática, sem pensar. Toda a cena que havia ocorrido me reaparecia em flashes que eu não conseguia encaixar no quebra cabeça de minha memória. Lembro-me dos soldados, dos tiros, dos monstros descendendo dos céus, do massacre.  Da forma como a fisionomia da Seulgi mudou e seus olhos revelaram uma presença estranha. De como ela me puxou, me pôs no carro, e disse: dirija. Assim que eu punha aquilo em ordem, tudo saía do lugar novamente. Nada fazia sentido. Era como uma história surreal que me contaram, mas na qual eu não queria acreditar.

Remontei meu pensamento. Escolhi a pergunta que eu queria fazer. "Como você fez aquilo?" Ela se virou para mim e me olhou nos olhos por um breve instante antes de desviar o olhar para baixo, como se tivesse vergonha de demonstrar aquele seu lado.

"Eu mexo na dimensão em que eles se comunicam. Você já sabe disso. O que você viu, o poder que você sentiu… Aquilo é a minha Marca ativada. Eu nunca tinha feito aquilo mas… A cada dia de passa, quanto mais eu uso a Marca, mais ela se torna numa parte de mim. Eu não sou a esperança para ninguém. Eu sou um monstro.”

“Não, você não é.”, eu disse imediatamente, sem nem mesmo pensar. “Você se defendeu. Usou suas armas contra a covardia deles. Ninguém pode te julgar… Eu não vou te julgar.” Meu primeiro instinto foi de fazê-la parar de se sentir mal, mas eu mesmo ainda não tinha me decidido sobre o que pensar da situação. “Você vai querer vir comigo?”, ela perguntou tímida, interrompendo meus pensamentos.

“Sim.”

Um silêncio se instalou entre nós. Ela olhou pra frente, para a paisagem a nossa frente, passou um tempo refletindo, e só então disse algo. “Eu quero ir pra casa.”

“Casa?”

“O Catorze.”

“Mas o Catorze…” eu parei antes de terminar a frase. A população do Catorze havia sido brutalmente morta num ataque estranho e súbito. Eu achava que ninguém havia sobrevivido - dizem que nem mesmo os prédios sobraram em pé, todos derrubados e incinerados. Mas parece que alguém havia, a Seulgi, e eu não conseguia imaginar o quão doloroso deve ter sido para ela ver o Centro ser destruído, especialmente se ela chegou a o chamar de casa.

“Sim, ele foi destruído até não sobrar nada. Mas eu quero ir pra lá. Não é como se tivéssemos algum outro lugar pra ir.”

“Você sabe como chegar lá?”

“Um segundo…”, ela pediu. Fechou seus olhos e eu percebi novamente uma luz dourada tenuemente surgir dela. Ao abrí-los, respondeu prontamente: “Sei.” E me direcionou para o Catorze.
O Catorze era o Centro mais famoso de todos. Estabeleceu seu nome por sua verdadeira humanidade e acolhimento de todos que chegavam. Era um dos poucos que mantinha em seu território diversas formas de entretenimento e permitia aos seus moradores uma vida normal. Por muito tempo, outros Centros chegaram a proibir a saída de seus cidadãos para os impedir de imigrar para o Catorze - e quando a notícia de sua destruição se espalhou, a resposta dos administradores dos centros foi fria.

“Em tempos como esse, quem investe em entretenimento e esquece-se do nosso trabalho de restauração nunca conseguirá sobreviver.”

O que não passava de uma mentira. Quando entrei para o exército do Treze, fui capaz de ler relatórios sobre o ataque do Catorze. Algumas classes não identificadas de aliens fizeram parte do ataque, incluindo, segundo relatos, um tipo de serpente subterrânea que cuspia fogo. A nossa vida atual pode ser surreal, mas há momentos como esses em que tudo parece ser mais absurdo ainda, como se Deus nos pregasse peças. Se alguém me dissesse que um dia eu teria que seriamente ler “Serpente subterrânea que cospe fogo”, eu provavelmente riria e diria para a pessoa parar de sonhar.

Pois bem: no momento, também me seria muito prazeroso parar de sonhar esse pesadelo horrível.

“Eu não estou conseguindo controlar a minha Marca direito, me desculpa.”, Seulgi disse.

“Como assim?”

“É que... Seus pensamentos…”, eu logo entendi. Percebi que deveria ser muito doloroso para ela. “Não, não que seja doloroso. Mas é que isso é mais uma parte da história que os administradores do Treze esconderam para vocês.” Como assim? Me perguntei. E antes de poder vocalizar a pergunta, ela respondeu: “Bem, a serpente foi a primeira evidência de que eles são capazes de se fundir e nos atacar de formas inesperadas. Aparentemente, eles são formados de unidades como as nossas células, mas cada uma delas tem algum tipo de consciência ou programação que permite que elas se comuniquem e mudem sua forma. Quando eles unem vários deles, conseguem ser ainda piores. Eles chamam essa serpente de Jormungand - a serpente do fim do mundo na mitologia nórdica. Eu me lembro… Como a cidade foi tomada em névoa. Uma névoa estranha, escura, e eu não conseguia respirar direito. E depois os gritos. O calor do fogo que tomava os prédios… Foi aí que consegui minha Marca.”

“Sua Marca?”

“Sim… Eu saí de casa para procurar meus pais depois de ouvir os gritos. Eles haviam saído para fazer compras. Depois de andar um pouco fora de casa, um aéreo me pegou.”

“Te pegou? E você… Sobreviveu?” Percebo como a pergunta se ela sobreviveu ou não é estúpida, mas ela responde seriamnete.

“Sim, ele não conseguiu me agarrar direito. Aliás, pareceu mais que ele tinha se esbarrado em mim. As garras dele deixaram duas cicatrizes em minhas costas e a dor era lancinante. Algo que nunca senti antes. Eu desmaiei poucos segundos depois de cair ao chão junto com o monstro. Quando acordei, já estava num laboratório... Aparentemente eu fui a única pessoa a tocar diretamente em um deles e sobreviver. A carga de radiação que eu recebi foi imensa, mas eu sobrevivi e agora… Sou assim. Isso não me ajudou a salvar meus pais, claro.”

“Por que você é assim? Você não é culpada pela morte deles. Você não precisa se culpar. Ninguém é capaz de salvar o mundo… Você sabe disso.”

Ela não respondeu. Respirou fundo e olho para suas próprias mãos como uma criança envergonhada. A dor que ela carregava em si era tão grande quanto o poder de sua Marca. Eu pude aceitar a morte ao meu redor porque qualquer uma delas poderia ser a minha e eu não tinha o menor poder de as parar. Mas como se vive com a morte dos outros quando você é o ser humano mais poderoso de todos?

“Sabe, eu não sei se posso te ajudar. Mas… De tudo que vi agora… Você parece ser uma boa pessoa. Na verdade, eu queria ter te conhecido antes. Teríamos sido… Talvez… Boas amigas. Você gosta de ajudar pessoas. Eu também. Mas ao mesmo tempo, e acho que você sabe o que é isso, eu me sinto infeliz comigo mesma. Como se independentemente do que dissessem, você fosse incapaz de se ver como suficiente. Eu sei o que é isso… Mas no momento, a última coisa que precisamos é isso. Podemos não ser íntimas, mas… Acho que me identifico tanto com você que quero que você seja feliz. Ou que esteja feliz, não sei. Talvez assim eu acredite que algum dia eu conseguirei ser feliz também.” Não pude olhar diretamente seu rosto por estar dirigindo, mas gosto de acreditar que ela sorriu quando eu disse aquilo.

“Obrigada… Acho.”, ela disse.

Em direção ao Catorze, parei para pensar sobre os últimos acontecimentos e tudo relacionado a eles. O que eu estava presenciando era, sem dúvidas, o fim da humanidade. Visto que Seulgi com certeza não faria nada mais pelo Treze, logo ele seria atacado por algo… Um leão voador de seis patas que cospe raios, quem sabe. Mas esses monstros estão aqui para ficar. E depois de tudo que a Seulgi me contou sobre eles, não consigo pensar em mais nada.

Eu não sei se estou realmente triste pensando no fim da humanidade. Sempre senti que tudo está destinado ao seu fim… Menos Deus, é claro. Deus… É como a única coisa ou energia no mundo que nunca chegará ao fim. E quando tudo acabar, é ele que vai saber como recomeçar. É nisso que acredito. Então se estamos acabando… É porque tínhamos que acabar. Talvez esses monstros saberão usar nosso planeta melhor. Ou talvez eles só estejam procurando destruir tudo mesmo. Quem sabe? Quando eu morrer, quando todos estiverem mortos, acho que isso não vai mais importar.

Francamente, quando penso racionalmente, posso soar niilista. O fato é que eu quero sim sobreviver. Eu quero encontrar alguém com quem eu possa viver toda a minha vida, ter filhos, casar… Quero contar pros meus filhos tudo pelo que passei e pode acreditar que fiz parte de nossa sobrevivência. Não sei se é isso que chamam de esperança, mas é um sentimento que me leva a frente, que me dá vontade de continuar andando. 

De repente, do nosso lado, passam correndo três enormes monstros terrestres. Os três parecem insetos e correm com três longas e desengonçadas patas que se ligam a um tórax mais ou menos esférico. Um longo pescoço protrude lateralmente desse tórax e leva até suas cabeças semelhantes à de serpentes. Eu nunca havia visto estes antes e eles eram muito mais estranhos do que eles normalmente são - normalmente imitações de animais.

“São fusões. Mas por que eles se fundiram assim… Não consigo saber.”

“Fusões?”

“Sim… Pelo que minha Marca conseguiu captar, um rastejador e um dos felinos. Parece ser mais rápido que a maioria dos monstros terráqueos.”

Essa não foi a única vez que vimos estes seres estranhos.

De repente, dezenas deles começaram a aparecer pra nós. E todos corriam para uma mesma direção. 

“Você não consegue captar o que eles estão fazendo?”, perguntei, já acostumada com as habilidades dela.

“Não… Estou me concentrando para poder nos manter escondidos. Se eu ativamente buscar informações sobre eles, posso atrapalhar nosso disfarce.”

Continuamos em nosso caminho ao Catorze e já conseguíamos ver, de longe, os prédios escurecidos e a paisagem da destruição. Ela não apresentava a menor reação, apesar de eu já ter entendido que ela não é de demonstrar seus sentimentos tão facilmente. Estranhamente, porém, ao me aproximar mais, comecei a ver uma névoa que me dificultava dirigir. “Que névoa é essa…”, perguntei. Seulgi arregalou seus olhos e me encarou como se eu estivesse louca. “Ué, você não tá vendo também?”

“Eu… Não.” Sua voz expressava um misto de terror e confusão. “Pare o carro”, ela ordenou friamente. E eu o parei. Ela se virou para mim e disse de forma didática: “Desde o ataque no Catorze, ninguém sabe o que é essa névoa. Mas parece que eu não a vejo. Eu apenas sinto a presença de algo muito poderoso. Então nós vamos descer do carro, você vai me segurar pelo braço e vamos andando, ok? Todo cuidado é pouco.” Eu aceitei, apesar de preocupada.

Assim o fizemos. De repente, eu estava andando no meio de uma névoa escura que não me permitia ver nada além da Seulgi, que eu segurava fortemente pelo braço. Após alguns minutos, ela me contou que estávamos no Centro. “Eu não vejo nada”, disse. “Tudo bem… Eu acho que já descobri o que é isso. Mas continue me segurando forte, tenho que testar algo.”

Senti andarmos para frente por um longo tempo, depois o som de uma porta enferrujada abrindo. “Agora vamos descer escadas. Me acompanha.” E descemos. Fizemos mais algumas voltas, descemos mais algumas escadas. Até que… “Olha, Wendy… Eu vou abrir essa porta. E talvez você sinta algo. Falta de ar, o corpo pesado. Não se desespere. Eu estou aqui do seu lado.”

Ao mesmo tempo que ela me deixou preocupada, ela me acalmou. Senti que poderia contar com ela e disse ok. “Então… Vou abrir.”

Ela havia me dito o que ia acontecer, mas eu não esperava que fosse assim. Eu fui ao chão imediatamente, incapaz de me manter em pé. Ela agachou e, enquanto me acariciava com as mãos, tentou me acalmar. “Calma”, ela disse, “Ouça o som da minha voz.”

Percebi então que a voz não havia vindo de fora. Sua voz emergia de minha mente. “Abra os olhos”.

A névoa havia indo embora. Eu olhava diretamente nos olhos dela. “Mas como…”, eu perguntei. Ao olhar rapidamente ao lado, porém, percebi que havia ali algo enorme como… o corpo de uma serpente. Minha reação foi de espanto enorme, ao qual Seulgi respondeu me segurando forte - “Não me solte. Se você me soltar, a névoa volta.” Eu olhei espantada para ela e ela continuou: “Sim, aquela é a Jormungand. E agora eu estou próxima de descobrir todo o plano deles.”

Fomos andando juntas em direção à cobra. Quando estávamos literalmente a um palmo de distância dela, Seulgi virou para mim e, sorrindo jocosa, me perguntou - “Você acha que se impressionou antes comigo né? Espere até ver isso.” E agarrou com a mão o monstro que nem mesmo conseguiamos ver completamente.

Ela imediatamente entrou no mesmo estado que havia entrado quando estávamos rodeados pelos soldados. Seus olhos brilharam dourados; ao redor de nós formou-se uma aura amarela e a fisionomia da Seulgi mudou consideravelmente. Ela parecia haver entrado em um transe e eu sentia a energia se acumular ao nosso redor. Eu me agarra com força a ela, porém, e me esforçava para não deixar de fazê-lo.

De fato, a energia que eu sentia agora era ainda maior do que a da minha experiência anterior. Eu a sentia fluir por mim e, de repente, me vi sendo sugado por ela.

Eu era a Seulgi.

Olhei ao meu redor e vi a casa da Seulgi antes do ataque. Senti seu pânico ao ouvir os gritos e ao me sentir ser rodeada pela névoa. Dei seus passos enquanto saía de casa e, por fim, senti a dor imensa de ser tocada por um dos monstros. Segui sua vida durante os experimentos, enquanto era treinada por militares; as dores de viver uma vida estranha ao lado de pessoas estranhas enquanto se debatia em luto por seus pais. Nada disso era justo. Eu senti sua raiva como se fosse minha e ouvi seus gritos como se fossem os ecos de meus próprios gritos. Nada disso deveria ter ocorrido.

Senti minha alma se misturar com a alma de Kang Seulgi e um turbilhão de sentimentos nasceu; sem piedade, passei em alguns segundos tudo pelo qual era passou meses para se recuperar. Para compreender. “Por favor”, eu disse, “Eu imploro… Pare.”  Pedi, com minhas últimas forças.

Ao voltar à realidade, tudo pareceu pior ainda.

Em volta de nós duas, os monstros se juntavam. Eles urravam e pulavam, mas não conseguiam se apróximar - percebi que a Marca da Seulgi ainda nos protegia. “Seulgi! Acorda!”, eu gritava, enquanto tentava retirá-la do transe. Ela ainda agarrava a Jormungand fortemente, seus dedos cravados sob suas escamas. Quando me virei para os monstros, vi a garra de um deles exatamente sobre minha face - ele havia pulado com sucesso em minha direção.

“É. É aqui que vou morrer.” Pensei rapidamente

Novamente, porém, fui surpresa pela ação de última hora da Seulgi. O monstro foi jogado do outro lado da sala por uma onda de energia vinda dela. Ela se virou para mim e sorriu. “Ninguém vai morrer hoje.”
Os aliens, ao se levantarem, simplesmente saíram e foram embora.

Com um simples olhar meu ela já entendeu o que eu queria saber: o que diabos aconteceu aqui?

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A/N: Demorou mas chegou.

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Comments

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TaeSunshine
#1
Chapter 1: Nossa uma fanfic SeulRene aqui no asianfanfics e em português <3
Obrigada por postar!!! :D Gostei bastante!