Missão

A Soldada do Fim do Mundo

Atravessávamos o deserto lentamente e tudo que se ouvia era o som das rodas sobre a estrada de terra. Éramos 10, contando o motorista. Todos treinados como soldados para defender a Terra e a Humanidade em seu último suspiro. E conosco a única e aparentemente última pessoa que realmente serviria para esse trabalho. Em uma parte separada do carro, presa como um animal, ela também esperava silenciosamente chegar em seu destino. “Por que a prendemos assim? Quero dizer… Se ela realmente é a última esperança, não é melhor tratá-la como um de nós?”, perguntei. “Fique calada, soldada. Aceite suas ordens.” E assim o fiz.

A verdade, porém, era que nada daquilo fazia sentido. Fazia alguns anos, seres estranhos descenderam dos céus. Cápsulas enormes, como ovos, carregavam-nos até o solo terrestre. Assim que elas tocavam o chão, abriam-se, revelando em seu interior estes monstros. Possuíam formas estranhas, como que saídas de uma animação de fantasia; suas habilidades estavam além de nossas compreensões e eles pareciam estar interessados em nosso fim. De início, eram poucos. Fomos capazes de conter alguns, matar outros. Descobrimos que eles atuavam em dimensões que não compreendiamos, que não nos eram visíveis, e por isso era tão difícil matá-los. Começamos a chamar toda arma que não entendiamos genericamente de “energia”. Escudos de energia que os garantiam maior resistência contra tiros ou qualquer tipo de ataque que tentávamos realizar eram nosso maior problema, mas quando a primeira onda havia sido completamente controlada, pensamos que tudo estava bem. Na realidade, foi aí que começou o verdadeiro ataque. 

Eles surgiam do nada, diferentemente de antes. E assim que surgiam, começavam a destruir o que viam pela frente. Aqueles que sobreviviam do ataque direto, morriam posteriormente pela estranha radiação liberada por eles. Alguns poucos, porém, sobreviviam de verdade. E deles nasceu nossa verdadeira esperança - as Marcas. O corpo desses poucos indivíduos, após sobreviver à radiação, acostumava-se à ela e desenvolvia sentidos para além dos que normalmente temos. E, com esses sentidos extras, surgiam de seus corpos algo como membros extras, que chamaram de Marca, como se eles marcassem a sobrevivência dessas pessoas.

Cada um possuía uma Marca de forma e habilidades diferentes. E, aparentemente, os seres alienígenas eram especialmente sensíveis a elas. Começou então todo um trabalho para o ajuntamento, pesquisa e treinamento dessas pessoas. Apesar de elas também liberarem a tal radiação, muitos cientistas, sentindo-se moralmente obrigados a este trabalho, sacrificaram suas vidas para a pesquisa das Marcas e de seus portadores. Algumas poucas teorias foram criadas antes que praticamente todos morressem. Também os maiores militares do mundo inteiro se uniram para transformar os portadores de Marcas em máquinas de guerra, capazes de finalmente devolver nosso planeta a nós. A verdade é que não havia tempo suficiente.

A primeira missão para que essas pessoas foram lançadas terminou em completo desastre. Os extraterrestres estavam já preparados para a possível revanche e fizeram algo ainda não compreendido: fundiram-se para formar um ser mais poderoso ainda. O pânico tomou as tropas, tanto portadoras e não portadoras de Marcas. Em poucos minutos, não havia mais ninguém vivo. Da rápida batalha que alí ocorreu, sobrou apenas uma colossal memória, de tamanho inimaginável - um monstro de tal constituição e poder de destruição que fez jus ao seu apelido - Apocalipse.

Isto é, sobrou o Apocalipse, e também a garota que estava conosco. A jaula em que ela estava presa permitia que uma quantidade levemente menor de radiação se difundisse até nós, mas não era nenhuma garantia. Para mim, fazia-lhe mais bem se a tratassemos como uma soldada, nossa companheira de luta. E de qualquer forma, segundo os últimos relatórios, os alienígenas haviam descoberto como controlar sua radiação, de forma a não produzir mais Marcas. Não faria mal recebermos a radiação - afinal, poderíamos muito bem ter um outro possível portador entre nós. De qualquer forma, não era eu a pessoa que daria os comandos. Minha opinião era inútil diante dos rios de dinheiro que estavam sendo gastos em todo aquele projeto.

A sensação era de que o fim estava próximo. O número de seitas apocalípticas nos últimos meses havia aumentado exponencialmente, alguns acreditando inclusive em darem-se voluntariamente para eles. “De divino eles não tem nada”, lembro do discurso de um dos meus superiores. “Antes lutar contra eles até a morte do que pensar duas vezes em desistir”. Ele era um dos que foi destruido pelo Apocalipse.


“Alguém trouxe algo pra comer?”, perguntou um dos meus companheiros, já algumas horas de viagem já passadas. “O Centro Humanitário já deve estar próximo. Você não vai morrer de fome até lá.” Outro respondeu. Centro Humanitário era o mais novo nome dado àquilo que antes chamávamos de “cidades”. A diferença é que não havia a menor liberdade - toques de recolher, trabalhos eram escolhidos a cada um, a comida era racionada e não se permitia que se fizesse muito barulho. Tentávamos acolher o menor número possível de pessoas em cada Centro, de forma a não faciltar o trabalho dos inimigos. Muitos possuíam entre si, porém, passagens subterrâneas. Tudo feito numa velocidade incrível, especialmente considerando os recursos escassos.

Os Centros funcionavam de forma a tentar ser o máximo autosuficientes o possível. Tinhamos portanto áreas para plantar, para cuidar de animais, para treinamento militar e qualquer outra necessidade. O que iniciou como um ideia de possibilitar às pessoas formar uma vida em um local diferente de suas terras natais, porém, tornou-se em um sistema repressivo e autoritário, em que cada Centro se blindava da necessidade de cuidar um dos outros. “Meus soldados”, “minha comida”, “minha tecnologia”. Os únicos que escapavam disso, claro, eram os mais ricos, que utilizavam sua antiga influência e afluência para controlar os poucos recursos que ainda tínhamos para eles. Se antes a opulência fazia pouco sentido, em face ao fim do mundo ela se tornava quase uma piada de mau gosto. Como crianças, brigávamos por migalhas, enquanto os adultos tomavam a Terra para eles. As vezes, por isso mesmo, eu me perguntava se realmente não merecíamos isso. Toda essa miséria, toda essa destruição, apenas uma forma de nos limpar. A erva daninha de uma terra que um dia pareceu tão promissora.

A memória mais forte que me vem nesses momentos de negatividade é de meu antigo amigo de escola. Ele, desde sempre muito sorridente e de bom humor, escondia por baixo de sua facilidade de transformar tudo em piada uma desesperança inigualável. Um desespero que o tomou assim que os ataques começaram. Eu já havia me tornado soldada voluntária quando o encontrei coincidentemente no Centro Humanitário onde eu trabalhava. Sofremos um ataque inesperado de aéreos e eu fui encarregada de esvaziar os dormitórios. Ele não levantava de seu lugar e eu tentava conversar com ele, mas não havia tempo.

- Levanta, por favor. Eu não quero te deixar aqui. Temos tanto que conversar ainda, agora que eu te reencontrei aqui.
- Acabou. Acabou. Acabou.- repetia ele, com olhos catatônicos.
- Não acabou. Nós podemos sair daqui. Ainda temos a chance de virar a situação a nosso favor. Mas não sei sentarmos e desistirmos…
Ele imediatamente agarrou meu braço, olhou em meus olhos furiosamente e disse: - Sentar e desistir é a melhor opção que temos. A vida acabou. Nunca mais haverá um humano na face desse universo. Só esses monstros. Essas máquinas travestidas de pesadelo. Vá… Se você quiser. Sua esperança será seu fim.


Até hoje não quero acreditar que minha esperança será meu fim. Mas cada vez mais se torna difícil… “Chega desses pensamentos”, comandei a mim mesma, mentalmente. A viagem já chegava a sua oitava hora quando ouvimos um som. Qualquer som atualmente era sinal de perigo, afinal, a coisa mais próxima de vida que tinhamos por perto eram aqueles seres misteriosos. Imediatamente ficamos alerta e pegamos nossas armas. “Se algum deles estiver por perto”, disse o meu superior, “Pare o carro imediatamente. Teremos que lutar.” Mal havia ele dito isso, ouvimos algo como um som de um águia. 

“Eles estão vindo…”, ouvimos de dentro da jaula. Não tivemos tempo nem mesmo de nos entreolhar e o carro já se encontrava girando, jogado para o lado pelo ataque de algum daqueles monstros. Por sorte, eu não havia perdido a consciência, mas muitos de meus colegas sim. Aqueles que ainda se encontravam acordados levantaram-se junto comigo após o carro parar de capotar e saímos para ver a cena: um enorme pássaro, mais para pterodátilo, nos sobrevoava. Suas quatro longas asas formavam uma grande sombra, e seu corpo brilhava tenuemente uma luz azul. Seu rosto era como o de um dragão e de seu tórax protruía-se duas pernas curtas com grandes garras. Sua cauda era longa e possuía uma crista afiada. Era como um monstro de um filme, mas real e pronto para nos matar.

“É um aéreo. Já lutei contra um desses - preparem-se contra os projéteis que ele lança e quando ele começar a descer, espalhem-se. Assim ele não conseguirá pegar mais de um de vez, se tiver que o fazer.”“Quem vai soltar a garota?”, perguntei.“Você não era tão íntimo dela? Vai você.”, disse meu superior.

A verdade é que ele nunca acreditou muito no meu potencial. Eu entrei para a guerra ainda um pouco gordinha, tímida, mas com vontade de lutar. Tinha os melhores desempenhos teóricos, mas na prática não conseguia me dar bem. A falta de autoestima era um problema, e os “companheiros”, sempre prontos para me diminuírem, também não ajudavam. E apesar de já haver passado um bom tempo desde essa época, eles ainda me veem como “a garota que não morreu por sorte”.

Não reclamei e logo fui soltar a portadora de Marca para nos ajudar. Corri até o carro e entrei novamente nele. Percebi que alguns dos meus companheiros haviam morrido, mas não havia tempo para luto - depois de um certo tempo, simplesmente se acostuma com a finitude da vida. Fui ao banco da frente, onde o motorista, também morto, se encontrava. Achei no porta-luva a chave para o cubículo onde se encontrava a garota e pude novamente sair. Eles não tiveram a menor chance de sobreviver. O ser lançava infindáveis projéteis brilhantes que, ao tocar algo, explodiam. Alguns de meus companheiros encontravam-se estraçalhados, como se houvessem sido esquartejados. Sobravam ali dois - o meu superior e um outro que não conhecia. Corri para a parte de traz do carro - “talvez eu ainda possa salvar os dois”, pensei. 

Tarde demais. De modo inesperado, o monstro aéreo pousou e, com sua enorme cauda, cortou os dois ao meio antes que eles pudessem fugir. O pânico me tomava. “Cristo, eu vou morrer! ...Não, não, eu não posso morrer, meu deus. Eu havia visto tantos morrerem. Tantos. E agora morrerei aqui? Não pude nem realizar minha missão.” Eu pensava mil coisas enquanto tentava, desesperadamente, encontrar a chave certa no molho. Aquele desgraçado alado parecia ter percebido que eu já não tinha mais chances, pois se aproximou lentamente, como se desejasse me analisar antes de me cortar em mil pedaços. “Eu disse, vamos trazer mais pessoas. Como é que vocês podem nos mandar em uma viagem longa com a nossa última esperança dessa forma, sem pessoas suficientes. E eles responderam, ah, se trouxermos muita gente, vocês atrairão atenção. Realmente. De que adiantou? Agora morram, morram, morram…” pensei e repensei, pensei e repensei.

O demônio ergueu a cauda e apresentou sua ponta afiada a mim. “Desgraçado…”, penso enquanto fecho os olhos. Meu último pensamento foi de meus pais. Como se aquele último segundo tivesse durado uma eternidade, pensei em cada abraço que já dei em minha mãe, cada beijo que dei em meu pai. Cada pessoa a qual eu já disse “eu te amo” e cada pessoa a qual já o deixei de dizer. Quantas delas ainda estariam vivas? Quantas teriam a possibilidade de viver até o último momento de toda a Humanidade? Talvez eu realmente devesse ter desistido, como meu amigo. Incapaz de agir, desisti. Por um rápido instante, senti o absoluto desespero daqueles que não encontram na vida o menor prazer.

Graças a algum ser divino, ou até mesmo a mais pura contingência, isso durou apenas um breve momento. “Pode abrir os olhos”, disse uma voz doce. Eu os abro, esperando estar no paraíso, ou no limbo, ou algo assim. Ao invés disso, tudo que vejo é o deserto, o carro, e novamente a cauda daquele ser. Mas ele parece estar se esforçando para chegar até mim, como se houvesse algo o impedindo. Finalmente compreendo o que está acontecendo - a garota está me protegendo com sua Marca.

“A sua Marca… Atravessa paredes?” “Não, boba. Mas a fresta da porta é o suficiente para ela passar. Agora, vamos negociar. Eu estou prendendo a cauda desse bicho. Enquanto eu a prender, você ficará viva. Minha Marca também vai te proteger se ele resolver atirar. Mas você vai ter que cumprir com minhas condições.” Ela dizia aquilo com a maior frieza do mundo, mas sua voz fazia tudo parecer um elogio. “Que condições?”, perguntei, tentando controlar meu pânico. “Você vai me tirar daqui de uma vez por todas. E depois me levar para onde eu quiser.” “Mas você é a última portadora. Se eu não te levar ao Centro Humanitário…” “Não importa. É isso ou você morre.” Era uma negociação injusta, mas eu tinha que jogar o jogo dela “Bem, pessoas mortas não fazem muita diferença.”, pensei.

Finalmente achei a chave e abri a pequena jaula. A garota que saiu dali parecia um anjo, e cada vez mais me pareceu errado colocá-la de forma tão bruta em um lugar tão desconfortável. Ela desceu e me olhou de cima a baixo. “Olá, soldada…”, fez um rosto como se procurasse algo… Wendy”. “Como você descobriu…?”, perguntei, atordoada. “Logo você vai saber. Bem, e o que fazer com esse monstrinho?”, perguntou ela, quase que brincando. “Você pode me dar sua arma?” “Hmm… Acho que sim?” Retirei a minha metralhadora da cintura e dei para ela. Ela fez um movimento com as costas e percebi que o ser movimentou-se como se houve-se algo o constringindo, apertando-o. De repente, ele se ergue, revelando seu tórax brilhante. “Achei… É aqui que você é frágil, não é?”, disse a garota, como se conversasse com o monstro.

Sem hesitação, atirou com a metralhadora ali até acabar a munição. O ser imediatamente caiu de barriga para baixo. Ela então se aproximou, e, novamente, como se algo invisivel ali agisse, o monstro foi girado para cima e sua barriga, agora machucada e menos brilhante, abriu-se longitudinalmente, numa incisão perfeita e limpa. Um líquido azulado jorrou de seu corpo e seu brilho cessou. “Ele está morto?” “De certa forma, sim. Mas temos que sair daqui. Logo chegarão outros para lhe dar vida novamente.” “Como assim? Eles podem reviver?” “Bem… Pense como se eles fossem carcaças. Como celulares. São programados e agem de certa forma enquanto tiverem energia dentro deles, mas se ficam sem energia, são inúteis. Mas eles não tem uma personalidade, nem nada parecido com uma alma. São artificiais. Quando um fica 'sem bateria', os outros ficam sabendo. Então eles vem e cada um dá um pouco de energia, de forma a recarregá-lo. Aí ele consegue voltar a viver, de certa forma.”

“Então tudo que fazemos é inútil? Matar um não serve pra nada?”, não pude esconder minha raiva ao ouví-la contar aquelas coisas sem o mínimo de compaixão. Saber daquilo era ter em mente que a Humanidade realmente não tinha esperança. Como ela convivia com aquele fato de forma tão… Boçal? “Não fique com raiva. Não fui eu que escrevi as regras. E afinal, cada um se acostuma com o que tem que se acostumar para viver. Você mesmo viu seus companheiros serem mortos um por um e mal pensou dois segundos sobre isso.” “Você não sabe disso. Você não pode ler minha mente.” “Não posso?”, perguntou ela sorridente, como se aquilo fosse uma brincadeira infantil. Não tive resposta para aquilo. “Mas não se preocupe. Eu não te julgarei. Agora vamos, temos lugares para ir!” E entrou no carro. Tomei um tempo para assimilar o que havia acabado de acontecer e fiz o mesmo. Antes de entrar no veículo, obviamente, tive que tirar o cadáver do motorista de seu banco. É, esses eram os ossos do ofício de ser uma soldada do exército do fim do mundo.

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Comments

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TaeSunshine
#1
Chapter 1: Nossa uma fanfic SeulRene aqui no asianfanfics e em português <3
Obrigada por postar!!! :D Gostei bastante!