Dois

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Dizem que você consegue dizer muito sobre uma pessoa olhando o jeito em que ela vai embora da sua vida. Não sei se isso é um fato, mas sei que era algo que não se aplicava ao Kanye — o que não era de surpreender — e honestamente, a nenhum de nós.

Foi no início do ano de 2015. Todos nós havíamos nos formados do Ensino Médio e era hora de decidir qual seria a faculdade, o concurso, o emprego; hora do desespero para falar a verdade. Começou com o Kanye. Estávamos observando pela janela na grade do terceiro andar, eu, ele e o Guilherme. Após quase dois anos de curso de Química, éramos os únicos que tinham ido até o final. A Larissa se envolveu em umas histórias de faculdade que fizeram a garota quase pirar na época e ele... Bom, nunca ficamos sabendo o motivo real de o Gabriel ter saído do curso. Gabriel era o meu terceiro melhor amigo, logo depois do Kanye e da Ana Luíza. Ele sempre me acompanhava no caminho para casa, me fazia rir e eu e o Kanye sempre pegávamos no pé dele em relação à sua ualidade não ser tão assumida quanto queríamos que fosse. “Eu não tenho nada para assumir!”, ele dizia. Falando de ualidade, tinha a Ana Luíza. Ela era a pessoa mais engraçada que você poderia conhecer na sua vida. Gostava de cantar, era carinhosa, falava bem alto e era lésbica. Gostava de Mulheres. Simples assim. Apesar de eu sempre dizer que quando ela crescesse mais ela ia parar com essa história de colocar a língua aonde não deve, ela nunca me deu ouvidos. Mas eu só dizia isso porque eu sempre fui suspeita quando o assunto era antipatia com mulheres. O Kanye nunca deu trabalho. Apesar de ele ter uma queda quando o assunto era “garotos que tinham olhinhos arregalados” como o tal cantor da banda que ele tanto gostava, ele nunca demonstrou que iria virar a camisa, para a infelicidade do Gabriel. E lá ele estava. O garoto que só me dava bons momentos e me fazia tão bem, estava me dizendo que-

— Eu terei que me mudar — disse ele, olhando uma árvore que balançava as folhas com o vento pela grade.

— O quê? — eu disse, surpresa, tirando os fones de ouvido. Os olhos do Guilherme se arregalaram ao meu lado.

—Mês que vem. Minha nota foi o bastante para conseguir uma vaga no curso de Educação Física da UFG que eu queria.

— Educação Física? Sério?! — exclamei. Aquele babaca ia fazer Educação Física? Depois de quase dois anos estudando Química?

— É, e eu-

— Kanye, na boa? Cala essa boca. Eu achei que entraríamos na faculdade juntos. E agora você me vem com essa merda de se mudar? E quando foi que você fez vestibular?

— Eu ia te contar...

— Quando? Agora que você já está indo?

— Laisa, eu achei que você iria entender. E poxa, eu vou para uma cidade que é o quê? A 20, 30 minutos daqui? — ele olha para o Guilherme com uma expressão apreensiva — Diz para ela Guilherme, que ela está sendo incompreensiva e infantil. — Guilherme simplesmente fica lá, parado, como se sua expressão dissesse “Eu é que não vou me atrever a dizer algo a ela”.

— É mesmo, Kanye. Eu sou infantil para caramba. Mas pelo menos não sou eu que estou por aí fazendo promessas falsas. Mas é assim mesmo. Eu sabia que uma hora você iria mostrar quem você verdadeiramente é e-

E eu engoli a frase. Kanye havia virado as costas para mim e estava seguindo o caminho do corredor até a escada. E você pode apostar que eu guardei aquela cena. A cena de uma lágrima caindo pela bochecha direita dele, enquanto se virava para ir embora.

Naquela noite eu chorei como uma criança. Deitada na cama, escutando Color Ring, com o celular em minha mão direita. Sem a coragem de discar o número e dizer o pedido de desculpas que estava preso na minha garganta.

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Demorou até a nossa formatura para fazermos as pazes. Eu me lembro de abraçar o Kanye muito forte, logo após de ele ter recebido o diploma de Técnico em Química do Professor Thiago.

— Me desculpa, por favor. Você não merece uma amiga igual a mim — eu disse, em meio a uma enxurrada de lágrimas. Era quase impossível de imaginar aquela cena; eu implorando por desculpas. Mas para minha defesa, era do Kanye que estávamos falando. E o Kanye sempre foi meu ponto fraco.

— Ei... — disse ele, segurando meu rosto com as duas mãos. — Eu te amo — e o olhar dele era sério e verdadeiro. Talvez essa tenha sido a vez que eu mais senti vontade de abraça-lo e nunca mais soltar. E eu fiz isso. O abracei tão forte como se o corpo dele fosse virar água e escorrer pelos meus braços, enquanto ele me acalmava acariciando meu cabelo.

E eventualmente, todos foram se ajeitando. A Larissa iria para a USP cursar Arquitetura. Ana Luíza e Gabriel iriam para a mesma cidade que o Kanye para fazer Jornalismo e Gastronomia. O Guilherme iria continuar na pequena cidade porque tinha a história dos pais não o deixarem morar sozinho, porque ele era muito dependente e uma série de outras desculpas. E você deve estar se perguntando, o que aconteceu comigo, certo? Depois de ter passado quase dois anos trabalhando em uma empresa química em Salvador, eu estava de volta ao centro-oeste para cursar Engenharia Química na UFG. E não sei a qual divindade ou cosmo eu devo agradecer por esses dois anos; amadureci, aprendi muita coisa e estava pronta para começar a vida de universitária.

Quando disse que essa história de que “você consegue dizer muito sobre uma pessoa olhando o jeito em que ela vai embora da sua vida” não se aplicava a nós, eu não poderia estar mais certa. Porque se fosse dizer como era nossa personalidade olhando o jeito como seguimos nosso caminho, você provavelmente diria que nunca fomos amigos de verdade e éramos um bando de individualistas. Mas não. De um jeito ou de outro entendemos a necessidade de cada um e, com muitos nós na garganta e corações apertados, nos despedimos. Em 2015, nos despedimos.

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