Capítulo Único.

Game Over

A música do momento era “What is Love 2k9”, e já era a terceira vez que Jessica a ouvia tocar no fliperama, em meio a sua jogatina. Mas, misturado aos sons dos jogos e de todos os outros adolescentes que se divertiam ali depois da aula, a repetição de músicas era a última coisa que tiraria o foco de Jessica Jung.

A estudante do último ano do colegial ajeitou os óculos de grau no nariz e inseriu mais uma ficha na máquina, tudo isso numa busca de colocar seu recorde naquela ali também. Era o passatempo da Jung ter seu username espalhado pelo maior número de máquinas possíveis daquele arcade – dava exceção àqueles que exigiam muito de sua energia física, como os de basquete, por exemplo. Não era difícil imaginar que a vida social de Jessica não recebia tanta atenção quanto os seus jogos eletrônicos favoritos, mas, mesmo assim, todos que frequentavam o lugar a conheciam. O fato de ela estar ali quase todo santo dia a fazia a cliente mais querida do proprietário.

E não era apenas de pessoas como Jessica que sobrevivia aquele nem tão pequeno fliperama de Koreatown, em Los Angeles. Jovens que buscavam diversão após a aula, uma desculpa para adiar o dever de casa ou para evitar a família, pessoas procurando por romance, ou que paravam ali por puro tédio e curiosidade, também ajudavam a manter a saúde financeira do lugar.

Se encaixava na última categoria o grupo de quatro garotas que havia chegado há poucos minutos ao estabelecimento. As garotas eram exatamente o oposto dos frequentadores dali: roupas coloridas (neon para as mais ousadas; meias, calças e blusas não combinavam), lycra, jaquetas jeans e muitos acessórios (fossem nos pulsos, no pescoço ou no cabelo). O atestado final para a popularidade eram os pescoços que viravam por onde passavam.

- Esse lugar tem cheiro de suor. – A segunda menor, seguindo a escadinha de altura, apertou o nariz. Tiffany Young Hwang, ou apenas Fany para os próximos.

- Desculpa não ter dinheiro para um lugar mais descolado, mas eu só recebo a mesada daqui a duas semanas... – Kim Taeyeon foi quem se lamentou, ela que liderava no quesito falta de altura.

- Relaxa, Tae, existe esperanças nesse lugar. – E as maiores pernas do grupo, também conhecida como Choi Sooyoung, saiu empurrando as duas menores em direção às maquinas vazias. – A Yuri disse que vai pagar o milk-shake para você mais tarde.

- Eu disse? – Kwon Yuri, a última a se pronunciar, era quem seguia o rastro das outras três, mas nenhuma do grupo estava exatamente acostumada ao ambiente. Era muita gente e tanta luz que Yuri duvidava que soubessem para onde estavam indo.

- Vamos para a máquina de pinball! De todos, é o mais bonitinho. – Tiffany apontou para um canto específico onde cinco máquinas daquela se alinhavam, cada uma piscando e fazendo barulho de forma diferente. Aquele lugar era o sinônimo de caos.

- Vamos nesse da montanha russa! – E Sooyoung se posicionou em frente à máquina e inseriu a sua ficha. As outras três se aglomeraram ao seu redor. – Vamos fazer o seguinte, quem fizer a menor pontuação paga o lanche da Taeyeon mais tarde.

- E se eu mesma perder? – Taeyeon indagou e Sooyoung parou para pensar por um tempo.

- A penúltima. – Yuri ainda abriu a boca para falar, mas a Choi não a deixou completar. – Mas, se a Taeyeon ficar em primeiro, ela tem direito de escolha.

- E eu vou depois da Soo, falei primeiro! – Yuri ergueu o braço no mesmo momento em que a bolinha prateada foi lançada ao jogo. Sooyoung tinha cara de quem enfrentava uma batalha de vida ou morte, enquanto Yuri e Taeyeon estavam vidradas igualmente em como a bolinha passava pelos obstáculos em uma velocidade incrível.

Já Tiffany achava que Sooyoung apertava os botões das hastes com uma aleatoriedade de quem nada entende do jogo. Tudo o que fazia parecia sorte ou causado pelos próprios elementos do jogo. Foi num momento de desinteresse seu que, ao olhar para a máquina de trás, reconheceu uma figura que havia encontrado na escola naquele mesmo dia.

- Olhem para trás e vejam só quem está aqui. – Deu uma risadinha debochada. Apenas Taeyeon e Yuri lhe deram atenção, de primeira. – Jessica Jung, em seu habitat natural. E que nervosa...

E debruçada na mesma máquina continuava Jessica, a música tema de Space Invaders sendo suprimida pelo som furioso que os botões faziam graças aos toques nada gentis da Jung. Pelas sobrancelhas franzidas e bico nos lábios, Jessica estava muito frustrada com o próprio desempenho naquela noite.

- Por que você não vai dar uma forcinha para ela, Fany? – Sooyoung sugeriu, sem tirar os olhos do jogo. Pelo sorriso malicioso que Tiffany trocou com Taeyeon, Yuri sabia o que estava por vir. Havia presenciado momentos parecidos na escola, mas não que estivesse de acordo. As amigas a achavam bobinha demais.

Tiffany se distanciou do grupo e, a passos calmos, se aproximou de Jessica e apoiou a mão ao lado da tela, numa postura folgada que contradizia o sorriso amarelo que carregava.

- Aparentemente, hoje está difícil salvar o planeta dos invasores alienígenas, não é?

Ao contrário do que Tiffany esperava, Jessica nem olhou para ela. Continuou a apertar os botões freneticamente, focada em não perder tão cedo. Mas isso era pura aparência. Por dentro, ela sabia que Tiffany continuava com o sorriso prepotente e que, em algum lugar, Taeyeon, Sooyoung e, merda, de todas as pessoas do mundo, Kwon Yuri, observavam mais uma tentativa de humilhação. Mais do que chatear-se pelas ofensas, Jessica se cansara do quanto aquilo se repetia, toda vez que se encontravam em algum lugar.

- Ofereça ajuda, Tiffany. Está muito difícil para ela. Se dependermos dessas habilidades, estaremos todos mortos. – E Taeyeon também ocupou o lado vago, bagunçando o cabelo de Jessica como se tivessem alguma intimidade.

- Oh, não. Eu não ouso apertar um botão! Não quero correr o risco de ter um exército de alienígenas cercando minha casa mais tarde. – Tiffany zombou e tão logo ela e Taeyeon riram em uníssono.

Yuri, que antes tentava garantir que Sooyoung não roubaria com uma partida extra, desistiu completamente no segundo em que Taeyeon deixou o seu lado. Aquilo sempre a deixava incomodada, afinal a Jung nunca nem lhes havia dirigido mais do que um “bom dia” antes de tudo começar. Ainda que Jessica mostrasse indiferença aos risos alheios, Yuri percebia que a postura da garota não era a de alguém com o mínimo de autoconfiança.

Yuri observava, como sempre, impotente e sem coragem de enfrentar as amigas e trazer algum juízo àquelas cabeças, até que algo tomou até mesmo Taeyeon e Tiffany de supetão. Jessica largou os controles e grunhiu ao acertar um forte tapa contra o joystick, que balançou como um saco de pancadas. Aos poucos, Taeyeon e Tiffany digeriram o que tinha acabado de acontecer e as risadas voltaram. Yuri não aguentou, a revolta trouxe um gosto azedo à boca e soltou as palavras por impulso.

- Por que não deixam a garota jogar em paz e vêm se divertir conosco?! – O tom revoltado da Kwon causou tanta estranheza em Tiffany e na Kim que as duas apenas olharam estranho para ela, de cima a baixo. Jessica também travou por um tempo, sem quiçá entender o que estava acontecendo. Não conseguia acreditar que estava sendo defendida por Kwon Yuri.

- Calma, a gente só estava brincando, não é? – O tom jocoso de Tiffany ainda estava ali, quando lançou a pergunta diretamente para Jessica. Taeyeon não disfarçava tão bem a risada, e aquele som foi o suficiente para trazer a Jung de volta à realidade. Não deu tempo para que a discussão a seu respeito se prolongasse. Pegou a mochila que tinha deixado aos pés da máquina, a colocou nas costas e saiu às pressas, sem verificar seu score no jogo e de cabeça baixa, como a fugitiva que era. 

- Ah, mas já vai?! – Taeyeon gritou, o que chamou a atenção de Sooyoung para a situação. Deixou o jogo de lado e perguntou:

- O que está pegando? – O fato de Taeyeon e Tiffany terem expressões divertidas enquanto Yuri olhava revoltada para algum ponto do fliperama era um tanto quanto intrigante. Piorou quando Yuri negou com a cabeça e saiu andando a passos firmes, deixando Tiffany boquiaberta e todas extremamente confusas. – É sua vez, Kwon!

Yuri, porém, não se importou com o chamado de Sooyoung. Continuou seu caminho até a saída do fliperama e olhou para ambos os lados. A noite já dominava as ruas, os faróis de carros e os letreiros das lojas iluminavam mais as calçadas do que as luzes dos postes. Em meio a tantas pessoas que transitavam ali, Yuri encontrou Jessica caminhando ao longe, à sua esquerda. Não pensou duas vezes ao apressar-se, pedindo passagem entre as pessoas até que pudesse alcançar a garota.

- Ei!

Jessica ouviu o grito, mas apertou o passo. Preferia acreditar que não era consigo. Voltou a ficar tensa quando sentiu o toque leve em seu ombro, seguido de seu nome.

- Jessica, não é?

Jessica parou de andar e inspirou fundo antes de se virar. Era duplamente esquisito encarar Yuri, naquele instante. Primeiro de tudo, ainda estava brava. Não era Yuri o motivo de sua raiva, mas a Kwon também nunca fizera o contrário, como fazia hoje, numa atitude de lua que Jessica ainda não conseguia compreender. Sabia que poderia acabar descontando sua raiva na garota, e não era essa a impressão que queria deixar. Bem, não que ela tivesse uma reputação boa, de qualquer forma.

O que a deixava ainda mais irada era que, apesar de toda a situação, seu sistema nervoso insistia em ir à loucura. O coração batia rápido e o frio na barriga apareceu contra a sua vontade, como em tantas outras vezes em que seus olhos repousavam em Yuri por acaso e por mais de três segundos. Eram como água e vinho, mas um ainda assim poderia ver beleza no outro. E certamente Yuri era bonita, e estranhamente... cheirosa? Essa parte acabara de constatar. O olhar preocupado da Kwon, com tendência ao desespero, fazia com que as ligações neurais de Jessica ficassem ainda mais difíceis de serem feitas.

- Desculpa pelo que aconteceu, eu não me orgulho do comportamento delas de forma alguma! Por favor, volte, eu não vou deixar que isso se repita! – Entre tudo de mais estranho que lhe ocorria, Yuri parecia de fato constrangida e se sentindo culpada pela situação. Jessica temia e apostava ser aquilo outra brincadeira de mau gosto. Era a única explicação plausível.

- Então por que só agora? – Jessica retrucou, ainda que a voz trêmula denunciasse o seu estado emocional;

- Quê? – Disse Yuri, confusa.

- Você nunca se importou, por que isso agora? – Jessica franziu a testa, começando a se irritar com a figura a sua frente. Yuri se viu sem resposta, ainda mais diante do estado de Jessica. A garota não chorava, mas Yuri podia perceber os olhos marejados por trás das lentes.

- Desculpa, eu –

- Só peça para as suas amigas me deixarem em paz. – Jessica balançou a cabeça e deu as costas para ela outra vez, seguindo o seu caminho, mas sem a mesma euforia de antes. Yuri pensou em chama-la ou pará-la outra vez, mas o que iria dizer? Não tinha justificativas para dar. Continuou ali, no meio do pavimento, tão presa aos seus pensamentos que rapidamente perdeu Jessica entre a multidão e a própria noção de tempo.

...

Para Yuri, havia sido uma noite inquieta, mas não foi esse o motivo que a levou a se atrasar para escola. Era o que acontecia todos dias, já que preferia esperar a carona da mãe a ter que pegar o transporte público. Chegava sempre ao bater do sinal e, como sempre, as amigas lhe esperavam em frente a sala.

- Chegou a boa samaritana! – Sooyoung a cumprimentou, em tom de humor. Desde que voltara ao fliperama, no dia anterior, brincavam e a questionavam pelo fato de ter saído em defesa de Jessica. Yuri argumentou seu ponto de vista: estavam passando dos limites com as “brincadeiras", mas tinha a impressão de teria a mesma eficácia se tivesse dito aquilo às paredes.

- Bom dia para vocês também. – E com breves abraços em cada uma das garotas, Yuri se conformou de que não seria de primeira que conseguiria persuadir as amigas ao seu ponto de vista.

- Eu vou poupar a Yuri de novos questionamentos, pois prefiro lembrar de quem ficara em primeiro lugar na disputa de ontem. – Disse Tiffany, sem um pingo de modéstia.  Taeyeon riu, lembrando-se do milk-shake grátis que, no fim das contas, Yuri teve de pagar.

- Vamos entrar, a professora está vindo. – Taeyeon disse ao ver a figura de meia idade surgindo ao fim do corredor. Tiffany e Sooyoung engajaram em uma conversa paralela que só interessava às duas, Taeyeon e Yuri as seguiram para dentro da sala, que já estava lotada se não pelos seus lugares vagos, próximos à janela.

Yuri percebeu também que ela foi a única que deu importância quando notou Jessica sentada em seu lugar habitual, a primeira carteira da fileira do meio. Na verdade, nem a própria Jung parecia dar qualquer importância para o fato de as quatro terem chegado ali. Estava desenhando, de cabeça baixa, em aparente calma e sem pressa alguma em completar os traços.

Yuri continuou a observá-la mesmo após sentar em sua cadeira, com as costas apoiadas na parede, as amigas muito ocupadas com seus próprios mundos para se importarem em quem Yuri mantinha os olhos.

Jessica continuou desenhando em aparente descaso com todos ao seu redor até a professora entrar na sala.  E Yuri, ao mesmo tempo que tentava compreendê-la, tentava encontrar resposta para a pergunta do dia anterior. Sendo sincera consigo mesma, já sabia, e só havia uma maneira de se livrar de tal peso na consciência.

...

O sinal que indicava o fim do dia escolar bateu e os alunos saíram às pressas de suas salas de aula rumo aos portões da frente, alguns correndo, outros conversando, aproveitando a companhia dos amigos. Yuri certamente se encaixava na última categoria, ainda que não estivesse cem porcento presente no momento: pela primeira vez havia reparado que Jessica era do time que saía da sala de aula tão rápido quanto podia. Yuri só tinha uma preocupação: encontrá-la sem o empecilho das amigas. Por sorte, cada uma tinha seus próprios deveres a cumprir após as aulas.

- Hoje você vai direto para a academia ou vai esperar sua mãe vir buscar? – Sooyoung a perguntou diretamente.

- Academia, o turno dela vai até mais tarde hoje. – Yuri respondeu.

- Bom, eu já vou que meu pai precisa de mim na ótica hoje. – Taeyeon se despediu, dando um breve abraço em cada uma das amigas.

- Quem sabe ele não se lembra do seu pagamento. – Tiffany foi otimista.

- Eu preciso. Tenho que pagar um café para a Yuri. – Taeyeon e Yuri trocaram um high-five. – Bom, até amanhã, meninas! – Taeyeon acenou antes de seguir seu caminho, atravessando a rua na faixa de pedestres quando o sinal ficou verde para ela. O movimento era intenso, de carros e pessoas.

- Bom, vamos, Miyoung? – Sem a intenção de irritar pelo nome usado, Sooyoung propôs o convite para a Hwang, que assentiu. As duas eram as únicas que moravam na mesma direção. De todas, Yuri era a tinha que andar por mais tempo para chegar em casa.

- Vamos. Eu não tenho nada de útil para fazer, mas deu de escola por hoje. – E, com Tiffany se pondo ao lado da Choi, as que restaram ali se despediram.

- Até amanhã, Kwon! – Sooyoung flexionou os bíceps enquanto dava passos para trás, acompanhando a Hwang. Yuri teve que rir das idiotices da amiga antes de seguir o caminho oposto, como normalmente o faria, mas, naquele dia, seu destino final não seria academia alguma.

O único lugar que Yuri tinha a capacidade de pensar era aquele, por isso orou para que estivesse certa assim que entrou no fliperama mais uma vez. As únicas coisas que sabia sobre Jessica era que gostava de jogos e tirava boas notas. Se a Jung tivesse ido para casa, seu esforço seria em vão. Por isso, mesmo sem saber o que diria e como diria, Yuri pôs-se a procurar Jessica como se aquilo fosse alguma missão contra o relógio.

Encontrou Jessica na mesma máquina do dia anterior, igualmente concentrada, tanto que mal piscava e só lhe faltava enfiar a cabeça na tela do fliperama. Yuri hesitou em se aproximar enquanto Jessica estivesse jogando, temendo arruinar seu jogo mais uma vez, mas não evitou um sorrisinho com a visão. Não foi de deboche, é que era engraçado e até fofo a seriedade que Jessica despendia em um jogo eletrônico. Por isso, esperou até que a Jung bufasse e socasse a máquina de leve para se aproximar.

Não saber o que dizer só então começou a deixa-la nervosa, mas seguiu em frente mesmo assim. Inspirou profundamente e, no momento que abriu a boca para dizer algo, Jessica a notou ali ao lado. Se Yuri já estava nervosa, seu coração então bateu como se tivesse acabado de correr uma maratona. Jessica primeiro franziu a testa, depois pareceu sem reação, como se não acreditasse em sua presença ali. A conclusão inesperada foi que Jessica apenas sacudiu a cabeça e voltou a atenção para o fliperama.

- Eu sei por que, na verdade. – Yuri interveio, antes que Jessica usasse mais uma de suas moedinhas. – Eu não tinha coragem de enfrentá-las. É bobo, mas eu pensava que acabaria sobrando para mim, mesmo não achando isso certo. Elas acham que porque você não demonstra se importar, não tem problema.  Eu não sei por que elas fazem isso, mas –

- É justamente por isso. Eu não ligo para elas, por isso elas não gostam de mim. – A resposta de Jessica foi veloz e certeira como uma flecha. Yuri, mesmo não sendo o alvo principal da frase, se viu desnorteada por alguns segundos devido a honestidade brutal do que acabara de ouvir. Yuri não tinha como discordar: ouvia poucas e boas sobre Jessica e outras pessoas da escola, da boca das amigas.

- Eu posso te ajudar a fazê-las parar. – Yuri sugeriu, quase em desespero. Percebeu que tinha surtido algum efeito em Jessica, pois a Jung apenas ajeitou os óculos e demorou mais do que o normal para dizer alguma coisa.

- Minha pergunta era por que isso agora?

- Porque eu cansei, sei lá. – Yuri deu de ombros e massageou a nuca. – Sim, eu posso estar me sentindo terrivelmente culpada por nunca ter feito nada, e eu não acho que seja suficiente apenas isso para me redimir, mas se eu conseguir fazer com que as coisas sejam um pouco melhores para você eu já estaria satisfeita. Eu não estou esperando perdão ou nada do tipo.

Jessica teve de fazer um esforço consciente para manter os pés no chão. Digo, se fosse qualquer um dizendo aquelas coisas, não surtiria em si o mesmo efeito de quando era Kwon Yuri pronunciando aquelas palavras. As platonices estúpidas eram as únicas coisas a lhe tirarem a capacidade de raciocínio. Jessica conseguia se sentir derretida, nervosa e irritada, tudo ao mesmo tempo, tudo graças a garota à sua frente.

- Posso fazer isso? – Yuri perguntou. Ainda sem capacidade de responder em voz alta, Jessica simplesmente aquiesceu em silêncio, o que arrancou um brilhante sorriso de Yuri. – Ótimo! Ah, e antes que eu me esqueça... – No momento que Yuri abriu um dos bolsos da mochila e passou a procurar algo nele, foi quando Jessica teve a certeza de que havia caído em alguma peça. – Acabei não usando todas as fichas ontem, pode ficar, nós atrapalhamos seu jogo. Eu não sou muito de fliperamas, então...

- Obrigada? – Jessica aceitou as fichas extras de mãos abertas, mas não fez questão de esconder sua confusão e, sobretudo, desconfiança. Yuri sabia que devia fazer algo àquele respeito.

- Eu que agradeço por me ouvir e, bem, pode voltar ao seu jogo, não irei mais incomodar. Boa sorte com os jogos. – Yuri se despediu com um aceno, que Jessica demorou três segundos ou mais para responder, atordoada com o que acabara de ocorrer. Abriu a mão direita e as três fichas douradas que acabara de ganhar de Kwon ing Yuri reluziam. Demoraria algum tempo para que pudesse entender o que havia acontecido ali.

...

Era fim de semana, mas Jessica ainda tinha na cabeça os acontecimentos da semana passada. Como costumava fazer todos os domingos, após os deveres e trabalhos escolares, Jessica terminava a boa faxina que fizera em seu quarto. A última etapa da limpeza seria tirar o pó de sua coleção de action figures, personagens dos seus jogos e quadrinhos favoritos. Era com eles que Jessica desabafava, enquanto uma fita do The Smiths rodava em seu pequeno rádio.

- Eu sou muito idiota por uma partezinha de mim querer acreditar no que ela disse? – Jessica disse em voz alta, como se o Vegeta de plástico fosse a responder. – Tudo bem que ela é bonita, mas tinha que ser ela? Há tantas garotas na escola...

Desanimada, Jessica devolveu o boneco ao lugar e se jogou contra a cama, o pano que usava para tirar o pó dos móveis foi atirado para algum canto que ela não fez questão de saber. Suspirou e seu olhar caiu sobre o criado-mudo ao lado da cama. Lá em cima estava o seu caderno de desenho, aberto especificamente em um que havia começado a fazer durante a aula. Uma garota, com traços de quadrinhos japoneses, mas que, apesar de alegar ser uma personagem original, a semelhança era inegável. Se Jessica tinha um tipo, ele era inconscientemente Kwon Yuri.

Sem se mexer muito, Jessica esticou o braço para alcançar o caderno e um lápis que se encontrava ali ao lado. Sorriu pela qualidade do seu trabalho e quiçá pelo que ele representava. Não tinha ideia de como seria sua segunda-feira, mas, por aquele dia, terminaria o seu desenho.

...

As aulas de educação física eram as favoritas de Yuri por dois motivos: podia se exercitar e conversas à vontade com as amigas, sem se importar se estavam falando muito alto ou não, como certamente faziam naquele momento. Corrida era o esporte do dia e, em pequenos grupos, todos os alunos deveriam dar voltas ao redor do campo de futebol americano. Yuri e suas amigas fizeram parte do primeiro grupo, então podiam agora simplesmente aproveitar o tempo livre enquanto esvaziavam suas garrafinhas d’água.

- Sua nova amiga é tão o estereótipo... – Sooyoung disse em tom de lamentação, atraindo a atenção de Yuri.  Yuri deu uma olhada para a pista de corrida e viu que Jessica mais andava do que corria. A situação era tão recorrente que a professora de educação física apenas ignorava.

- Se vocês quiserem eu posso ir lá dar uma forcinha, umas palavras de motivação. – Apesar de a fala de Taeyeon ter sido mais uma brincadeira do que uma ameaça, Yuri negou com a cabeça, o que não passou despercebido.

- Qual o problema dessa vez? – Tiffany a questionou.

- Por que vocês fazem isso? – Yuri enfim expressou sua indignação, o que tomou as outras de surpresa.

- Ela nem dá atenção, pare de ser a politicamente correta. – Sooyoung revirou os olhos.

- Não liga porque vocês não viram o quão nervosa ela ficou depois daquilo do arcade. – Yuri rebateu, na mesma hora em que se lembrou da feição angustiada da Jung.

- Por que você resolveu se importar com isso, também? – Taeyeon questionou.

- Porque eu cansei de relevar porque vocês são minhas amigas. – Dessa vez, Yuri teve uma resposta na ponta da língua. – Pode ser que, realmente, algumas pessoas não liguem para as provocações de vocês, mas ela sim. Só estou pedindo para que parem de pegar no pé dela, mais nada.

Houve um tempo de silêncio desconfortável entre as três, mas que para Yuri foram segundos de completa paz. Era como se tivesse tirado um enorme peso de seus ombros, deixado sair algo que estava preso em sua garganta havia algum tempo.

- Ela está fazendo seu dever de casa em troca de tudo isso? – Tiffany tentou quebrar o gelo. Funcionou, visto que até Yuri deu uma risadinha ao chacoalhar a cabeça negativamente.

- Era o mínimo a se fazer. Você estragou o recorde dela, Fany.

Após ouvir risos das amigas, Yuri voltou a atenção para a pista de corrida e lá estava Jessica, ao canto e perto dos bancos, bebendo água de uma garrafinha para compensar o tamanho esforço físico. O rabo de cavalo já não era mais tão justo quanto antes fora e as bochechas estavam vermelhas por conta do calor. Yuri tinha que admitir que, apesar dos óculos enormes e dos comportamentos nada sociais da Jung, a garota era fofa, tinha o seu charme.

O olhar fixo de Yuri podia ter passado despercebido para as amigas, que já fofocavam sobre qualquer outra coisa, mas acabou atraindo a atenção de Jessica para si. Jessica olhou rapidamente e Yuri nem teve certeza se a Jung notara o sorriso que deu em sua direção. Queria dizer a Jessica sobre a conversa que acabara de ter com as amigas. Não era como se tivesse certeza de que tinha funcionado, por ora, mas era algo. Precisava que Jessica fosse honesta com ela, caso se repetisse, mas Yuri ainda tinha dois problemas: encontrar o melhor momento para falar com a Jung e a fazer acreditar em si.

Não seria tão simples como poderia parecer.

...

Foi coincidência tão grande que pareceu mentira. Yuri não acreditaria se não tivesse acontecido com ela. Depois de mais de uma hora de exercícios, Yuri terminava sua rotina com dez minutos de esteira, enquanto cantarolava as músicas do ambiente e observava o movimento da rua pela grande vidraça do estabelecimento. Faróis de carros faziam as sombras dançarem dentro da academia e, ocasionalmente, pedestres passavam para lá e para cá.

Yuri teve a impressão de estar delirando quando uma silhueta lhe chamou a atenção. O mesmo moletom e converse nos pés, a armação e a mochila... E uma pelúcia nas costas? Yuri não pensou duas vezes. Desligou a esteira tão rápido quanto pôde e saiu dali num pulo, quase deixando para trás a mochila no vestiário.

Saiu sem se despedir de ninguém, correndo rua a baixo na direção em que viu Jessica passar. Parou na esquina e olhou para os lados, sem saber se seu coração batia por desespero ou esforço físico. Talvez os dois.

Reconheceu Jessica há quase cinquenta metros à esquerda. Yuri correu, a tempo de vê-la entrar em um restaurante de comida asiática bastante simples. Havia uma fachada de nó máximo três metros e uma placa que Yuri não leu. Estacionou antes mesmo de entrar, estagnada. A iluminação era alaranjada e amena, dando cor às paredes que já não eram tão brancas. Havia uma única bancada à direita, com alguns bancos altos, e umas três mesas a esquerda, cada uma com um par de cadeiras. Apesar do espaço minúsculo, estava lotado, com apenas uma das banquetas vazias.

Havia dois funcionários atrás do balcão, preparando a comida que parecia ser coreana: um senhor de mais idade e um jovem de cabelos curtos e descoloridos, mas que claramente tinha uma descendência asiática, apesar da altura. Foi só então que Yuri notou Jessica ali, erguendo uma portinha do balcão para que pudesse entrar.

- E aí, querida, como foi hoje? – O mais velho perguntou, usava uma espátula para mexer os vegetais em uma grande frigideira.

- O mesmo. Eu já volto para ajudar. – Foi só quando Jessica passou por uma porta que levava a sabe-se lá onde que Yuri identificou o boneco que carregava nas costas: uma grande pelúcia do Donkey Kong.

Yuri se viu sem ter muita escolha. Suada e às avessas, como estava, tomou o lugar vago para si e recebeu de pronto um cardápio do rapaz oxigenado. Teria que arrumar uma boa desculpa para a sua demora e falta de fome, quando chegasse em casa.

...

Sua tigela cheia de bibimbap chegou fervendo, barata e deliciosa. Constatou isso nas únicas duas vezes que levou uma quantidade digna à boca. Foi o tempo suficiente para Jessica reaparecer, dessa vez sem mochila ou pelúcia, mas com um avental e com os cabelos presos em um coque alto.

Yuri parou de mastigar assim que a Jung apareceu, cheia de expectativa. Jessica também parou no tempo quando viu a Kwon ali, de bochechas estufadas e ligeiramente descabelada. Não costumava afrontar, mas Jessica não escondeu a sobrancelha erguida na direção da visitante. A confusão era tão forte quanto as batidas do coração. O que diabos Kwon Yuri estava fazendo ali? O mais estranho de tudo foi que Yuri fora a primeira a desviar o olhar para baixo, e voltou a encher os cheot-garak de comida.

Yuri permaneceu quieta até livrar a tigela de qualquer rastro de comida, o que Jessica agradeceu. Apesar de ainda achar a situação bizarra, sentia-se envergonhada apenas com a presença de Yuri ali, em frente ao seu pai e ao primo. Nenhum dos dois parecia se importar com a figura que não era exatamente o perfil de gente que costumava frequentar o pequeno restaurante. Era ainda mais vergonhoso quando pegava Yuri olhando em sua direção. Parecia que nunca tinha cozinhado antes e, por vezes, quase deixou o que quer que estivesse em mãos cai.

Foi quando Jessica teve de receber o pagamento de um dos clientes que Yuri resolveu se dirigir a ela. Tomou um susto que não conseguiu esconder quando Yuri tocou seu braço para chamar a sua atenção discretamente.

- Eu falei com as meninas. – Yuri sussurrou. Jessica ajeitou a armação dos óculos, desconfortável, e fechou a caixa registradora. – Parece que elas –

- Eu não quero falar sobre isso agora. – Jessica respondeu sem encará-la. Yuri entendeu o motivo: estavam cercadas de pessoas e duas delas aparentemente bastante próximas da garota.

- Posso falar com você rapidinho? – Yuri insistiu uma última vez. Jessica olhou para o pai, que cozinhava, e para o restaurante.  Não havia ninguém aguardando para ser atendido.

- Sehun! – Jessica chamou o garoto de cabelos descoloridos, que imediatamente se virou para ela. – Tome conta do caixa, por favor. Cinco minutinhos.

Yuri esperou Jessica tirar o avental e sair de trás da bancada para segui-la para o lado de fora, largando a bolsa sobre o banco que ocupava. Não deixou de notar que o garoto olhava para ela com uma sobrancelha erguida, como Jessica fizera antes para ela.

Pararam mais à esquerda do restaurante, em frente a um comércio fechado cuja porta de ferro possuía pichações que ambas não eram capazes de ler, mas ao menos havia uma marquise para protegê-las do sereno.

- E você acha que apenas isso vai resolver? – Jessica a questionou, de braços cruzados.

- Eu espero. Por isso que eu queria falar com você. Se acontecer de novo, você pode –

- E por que você acha que eu confiaria em você para isso? – Jessica viu Yuri ficar sem resposta outra vez. Jessica não conseguia se revoltar, a expressão de confusão da outra era fofa e engraçada demais ao mesmo tempo. – Você me seguiu até aqui?

- Eu? Não! Quer dizer, mais ou menos? – Yuri gaguejou e atropelou as próprias palavras. Viu a expressão de Jessica mudar se espanto para, em segundos, começar a rir. – Eu estava malhando e te vi passar. Desculpa, eu não quero parecer louca.

- Eu já acho, por se importar. – Jessica disse, com um tom de humor sádico.

- É o mínimo? – Yuri rebateu e dessa vez foi Jessica que permaneceu em silêncio, desviando o olhar para outro canto. – Aquele senhor é seu pai, não é? Alguém sabe?

- Não é importante. – Jessica resmungou, claramente sem gostar do rumo da conversa.

- Ajuda é importante. – Yuri deixou Jessica sem resposta outra vez, mas, para o bem das duas, preferiu deixar o assunto. – O restaurante é dele? – Viu Jessica assentir, relaxando aos poucos. – A comida é muito boa, sem brincadeiras.

- Adianta de algo ir para a academia e comer tanto depois? – Jessica ajeitou a armação, por costume, e encaixou as mãos nos bolsos de trás da calça. Não sabia qual o motivo da interação, mas seguiria com ela. Provavelmente aquilo ficaria na sua cabeça pelo resto da noite.

- Eu não engordo fácil. – Disse Yuri, com um sorriso orgulhoso. – O garoto é seu irmão? Desculpa, mas vocês são completos opostos.

- Primo. Por quê? – Algo que Jessica suportava constantemente era histeria quanto ao rapaz. Mandaria Yuri embora ali mesmo, se fosse o caso. Seria uma enorme decepção.

- Porque ele me olhou feio quando a gente saiu. – Jessica riu com a constatação. Mal tinha reparado.

- Ele nunca te viu na vida, é por isso. Aquele cabelo não faz parecer, mas é um bom garoto.

- Se fazer de durão é genético, então? – Yuri brincou e Jessica riu outra vez, negando com a cabeça.

- Cala a boca.

- É sim! Eu gosto de te ver rindo, aliás. – Aquele comentário, sim, pegou Jessica de guarda baixa. O riso parou e ela se viu sem reação, até abaixar a cabeça, pois tinha certeza que tinha ficado no mínimo vermelha. Yuri também se sentiu minimamente constrangida depois de notar que havia deixado a outra sem jeito. – Desculpa. Eu entendo a proteção dele contigo, eu sou igual com a minha irmã mais nova.

- A diferença é que eu sou mais velha, apesar daquele tamanho todo. – Yuri achou que o assunto morreria ali, mas, para a sua surpresa, Jessica até decidiu compartilhar uma informação que não havia pedido. - Eu tenho uma irmã, mas é recém-nascida. Como minha mãe tem que cuidar dela, então estou ajudando com o trabalho.

- A minha tem seis e é uma peste. – Jessica riu da convicção que Yuri teve ao dizer aquilo. – Bem, eu malho na rua de trás, se precisar de alguma coisa, depois da escola.

- Certo. – Jessica assentiu e Yuri sorriu com a resposta positiva. – Acho melhor eu voltar...

- Eu também tenho que voltar, antes que achem que eu tentei fugir sem pagar. – Yuri concordou e, após uma tímida troca de sorrisos, ambas seguiram para dentro do restaurante, Jessica liderando o caminho.

Yuri recuperou a bolsa e de lá tirou sua carteira. Usou quase todo o troco que tinha para pagar a comida para Jessica, que já tinha reassumido a caixa registradora. Com promessas de “até mais”, se despediram com sorrisos amigáveis e assim Yuri deixou o estabelecimento, exibindo os dentes para as ruas praticamente desertas. Quiçá fosse o sentimento de realização pessoal, mas se sentia feliz como nunca antes.

Tanto que poderia cantarolar pelas ruas sem se importar com que os outros achariam.

...

As últimas semanas vinham sendo estranhíssimas para Jessica Jung. Não, as garotas não mais se dirigiam a ela. Claro, houveram olhares estranhos e cochichos nos primeiros dias, quando Yuri não estava por perto, mas foi um comportamento que morreu e morreu aos poucos.  Estaria se sentindo completamente invisível, se não fosse por Yuri. Por algum motivo, Jessica achou que seus encontros eram uma espécie de segredo? Bem, isso se provou completamente falso quando Yuri começou a cumprimenta-la e puxar assuntos corriqueiros pelos corredores ou nos intervalos de aula. Aquilo era muito estranho para Jessica por dois motivos: não sabia como Yuri fazia para conseguir puxar conversa tão naturalmente e ninguém dava bola para como a Kwon agora conversava com a excluída da sala.

Ao mesmo tempo que tudo estava mais tranquilo, parecia que se preocupar menos em ouvir besteiras pelos cantos daquelas pessoas – ainda não fazia ideia do porquê de Yuri ser próxima de gente como aquela -, sua salvadora era quem parecia querer lhe dar ataques cardíacos. Não estar sempre alerta deixava seu foco permanecer exclusivo, Kwon Yuri. Aí Jessica não conseguia falar sem gaguejar e enrubescer, ou até manter contato visual. A sensação de querer bater no próprio rosto depois era previsível.

Mas estava feliz, de um modo geral. Exceto pelos incômodos, sua rotina continuava a de sempre. Ia ao fliperama quando os pais não precisavam de ajuda (no restaurante ou como babá), já que era como ganhava e gastava o seu dinheiro, estudava antes de dormir e tudo se repetia.

Por isso, num sábado à tarde, Yuri sabia muito bem onde encontraria Jessica. Dessa vez, ao menos estava de banho tomado, ainda que a bolsa da academia estivesse no ombro. Acabou com a água da garrafinha assim que foi agraciada com o ar condicionado do fliperama e, certeira, foi até os fundos do estabelecimento, ignorando completamente os olhares de garotos que pareciam ver uma mulher pela primeira vez na vida. E lá estava Jessica, quase enfiando a cabeça numa máquina de Street Fighter II.

Para não atrapalhar Jessica no que quer que estivesse tentando alcançar, Yuri chegou silenciosamente, mas percebeu que Jessica a notou pelo pequeno tique que tinha de franzir o nariz. Yuri sorriu para si mesma e deixou a mochila aos pés da máquina, antes de apoiar os braços ali, tomando cuidado para não acertar nenhum botão.

- Você quer ter dor de cabeça depois ou estragar sua vista? – Yuri achava fofa a expressão de Jessica, como se tentasse derrotar um inimigo de guerra. Só não era tão possível ver a fúria nos olhos da Jung, pois os óculos refletiam as várias luzes da tela.

- Ela já está estragada. – Yuri riu da resposta rápida. – O que faz aqui?

- Apostei comigo mesma que te encontraria aqui e parece que estava certa. – Yuri disse com convicção e, logo depois, Jessica foi anunciada a vencedora daquela luta. Parecia ter ganhado o torneiro. A Jung se alongou, mais orgulhosa de si impossível, mas desviou o olhar de volta para a tela quando viu que Yuri sorria para ela, a observando daquele jeito. – Não há nada de errado em ser previsível, você deve saber de onde eu venho.

- Eu vi a mochila. – Jessica ajeitou os óculos e abaixou-se para recolher os tíquetes de brinde que ganhara no momento que a máquina começou a expeli-los. Teria o suficiente para encher os bolsos de doces na bomboniere do fliperama.

- Podemos jogar uma? – Yuri fez a pergunta tão repentinamente que Jessica parou de dobrar os papeizinhos para pôr no bolso no mesmo instante. – Não que eu saiba jogar, mas às vezes apertar todos os botões ao mesmo tempo ajuda.

- Você está falando sério? – Jessica indagou, sem saber se deveria tirar suas fichas do bolso ou não.

- Vamos, está com medo de perder? – Yuri provocou e, bem, Jessica achou que fosse ter outro piripaque. Por outro lado, Yuri sentiu o coração quentinho pelo sorriso de orelha a orelha que Jessica direcionou a ela.

- Se você ganhar eu te dou todos os meus tíquetes e fichas. – Jessica desafiou e, com um aperto de mãos, selaram a aposta. – Melhor de três.

- Boa sorte. – Yuri brincou e, logo depois de Jessica inserir duas fichas na máquina, cada uma assumiu o seu joystick.

Melhor de três virou melhor de cinco e, como era esperado, Jessica saiu vitoriosa. Mas não foi Street Fighter a única coisa que jogaram. Na verdade, Jessica apresentou a Yuri todos os seus jogos favoritos do arcade. Competiram nos que poderiam jogar juntas, tomaram turnos quando apenas um jogador era permitido. Yuri tinha duas certezas: que horas haviam se passado sem que tivessem percebido, e que Jessica era muito boa no Space Invaders. Ou ela era muito ruim.

- Invés de só atirar, tenta não ser atingida. – Jessica aconselhou, com as mãos nos bolsos do moletom e um sorrisinho maldoso nos lábios. Era a primeira vez que via Yuri vermelha e raiva daquele jeito.

- O que acha que eu estou tentando fazer?! Essa música me deixa desesperada! – Yuri explodiu quando o baixo da música do jogo acelerou e as naves continuaram a descer. E lá vinha o som de sirene... – E ainda tem essa nave vermelha gigante!

- É psicológico. – Yuri teve vontade de xingar Jessica pela resposta. – Vai, deixa eu te ajudar.

Bom, se antes era o ritmo crescente da trilha sonora que alterava as batidas do coração da Kwon, por algum motivo, quando Jessica também segurou o joystick para ajudá-la a desviar dos disparos inimigos, colocando a mão sobre a sua, Yuri sentiu não apenas o coração se alterar. De repente, seu corpo travou e, apesar de ter parado de respirar após uma profunda inspiração, o perfume de Jessica pareceu ficar marcado em suas narinas... Era baunilha?

- Yuri, atira! – Ah, certo, ela devia fazer aquilo. Yuri balançou a cabeça e tentou se recuperar de um pânico que certamente não fora causado pela intimidação dos alienígenas.

O que diabos havia acabado de acontecer?

A pulga que permaneceu atrás da orelha foi se silenciando à medida que continuaram se divertindo no fliperama. Foram tantos jogos que Yuri fora incapaz de nomear todos. Porém guardaria na memória o quão fofo e engraçado foi ver Jessica lutando – física e literalmente – contra uma máquina de pelúcia. Não adiantou Yuri tentar convencê-la do contrário, Jessica não desistiu da ideia e conseguiu, mas não sem antes gastar boa parte de suas fichas. Yuri só fora entender o motivo de tanto esforço quando, depois de conseguir o tal “ursinho estúpido”, Jessica o entregou como presente. Yuri ficou sem palavras, claro, mas Jessica justificou a generosidade pela ajuda. Yuri que, ao mesmo tempo que se sentiu imensamente grata, lutou contra a vontade de agradecer a Jessica com um abraço de, bem, urso.

Decidiram parar quando os olhos já ardiam pela exposição às telas por tanto tempo. Recolheram todos os seus tíquetes e foram trocar pelos seus merecidos brindes. Yuri não conseguiu mais que meia dúzia de balas, enquanto Jessica saiu com dois saquinhos cheios de doces sortidos.  Yuri se surpreendeu quando Jessica entregou um deles a ela.

- Para quê isso? Você ganhou. – Yuri indagou, sem saber porque aquilo havia parado em sua mão.

- É por ter feito companhia para mim hoje. – Yuri percebeu a timidez da outra, o que a fez rir sem jeito também. – Aceite ou eu vou ficar brava.

- Não precisava disso tudo, eu também gostei da companhia. – Yuri disse sem pensar muito. A forma como Jessica se envergonhava tão fácil, mais uma vez, aquecia o seu peito. Era normal perceber o quanto a Jung poderia ser adorável, não? Loucura seria não o ver. Yuri sentiu que seu corpo reagiria de forma estranha quando Jessica a encarou por mais de um segundo outra vez, mas a Jung logo desviou o olhar para a porta de saída.

- Bom, vamos? – Jessica perguntou e após meter o saco de balas em sua mochila, Yuri concordou em segui-la para o lado de fora. – Sua mãe vem?

- Na verdade, eu vou até ela. – Yuri parou quando chegaram à calçada. Dali, cada uma seguiria para um lado, e a Kwon não sabia como se despedir. Talvez um convite soasse bem...? – Você poderia ir lá em casa, fim se semana que vem. Eu alugo umas fitas e faço pipoca. Não tenho passatempos muito interessantes, mas... – Temerosa, Yuri olhou para Jessica, que a olhava como se tivesse acabado de ouvir um absurdo. Sem graça, Yuri desviou o olhar tão rápido quanto pôde. – Esquece, besteira minha.

- Não, eu gostei da ideia! É só que... – Percebendo que iria se enrolar com a resposta, Jessica desistiu de dar uma justificativa. – Me passe o seu endereço e quando confirmarmos o dia eu estarei lá.

- Pode deixar. – Um sorriso voltou a aparecer no rosto de Yuri que levantou o punho, como forma de cumprimento, ainda incerta. Jessica riu quando deram um soquinho de despedida. – Até segunda?

- Até segunda. – Jessica concordou e, após um sorriso e um aceno, seguiu seu caminho, com o saco cheio de balas em uma das mãos e um possível sorriso no rosto.

Yuri continuou ali, a observando partir, com o mesmo sorriso enquanto se abraça à pelúcia. Descobriu que era possível estar extremamente feliz e preocupada ao mesmo tempo. Tinha certeza de que não conseguiria pegar no sono enquanto não tivesse respostas para as perguntas e mais perguntas sobre si mesma que aquelas poucas horas no fliperama haviam trazido à luz do dia.

Havia algo de errado com ela.

...

Para Yuri, o que se iniciou como uma excelente ideia, acabou se tornando o completo oposto. Se a intenção foi boa, de passar uma noite com a nova amiga, transformou-se em arrependimento. Desde o dia do fliperama, Yuri vinha pirando na batatinha. Tentava entender o que se passou consigo e então ficava com Jessica na cabeça, tentava tirar o pensamento de Jessica, e apenas ficava estressada.

Se fosse só lidar com os próprios pensamentos, ainda seria mais fácil. Mas tinha que ver Jessica todo dia na escola e, toda vez que a Jung chegava a sala de aula, era como se Yuri fosse acometida por um ataque de ansiedade. Yuri pensou que ignorá-la poderia ser ainda pior e, achando que aquela neura passaria em pouco tempo, se esforçou para agir com normalidade.

O problema era que, até então, Yuri não havia tido que lidar com a presença de Jessica sozinha. Era isso que explicava o seu estado nervoso. Estava sentada no sofá do apartamento, balançando a perna e sem prestar atenção no que passava na tevê, os olhos focados no ponteiro do relógio na parede, logo acima. Sentada no tapete com pecinhas de montar, a irmã mais nova a encarava com a testa franzida. Achava a irmã mais velha estranha, mas nunca havia a visto daquele jeito.

O relógio tinha acabado de passar das seis e vinte e um e trinta e sete segundos quando a campainha tocou. Yuri se levantou num pulo e sentiu o coração quase sair pela boca com o susto. Correu para porta tão concentrada em ajeitar o cabelo e as roupas que nem prestara atenção por onde passava e, quando pisou em uma das pecinhas de lego espalhadas pelo chão, o grito que soltou refletiu a dor que até sua alma sentiu.

- Gayoon! – Yuri gritou, pulando numa perna só enquanto segurava o pé ferido. – Mãe, ela –

- Eu não fiz nada, ela que não olhou para o chão! – A mais nova foi rápida em se defender. A mulher, que estava no próprio quarto, nem se deu o trabalho, acostumada com os desentendimentos das crianças.

- Aish! – Yuri bufou e, mancando, apressou-se até a porta, não queria deixar Jessica a esperar por muito tempo. E quando abriu a porta, lá estava ela, com o moletom de sempre, os jeans gastos e os all-stars no pé, os cabelos displicentemente arrumados e dois olhinhos virados para ela por trás das lentes arredondadas. Yuri lutou contra, mas o frio na barriga se fez presente mesmo assim. Quase que esqueceu de cumprimentar a garota.

- Oi, pode entrar! – Yuri conseguiu se recompor e sorrir para Jessica, cedendo passagem para que entrasse. Jessica pediu licença e tirou os sapatos, enquanto Yuri trancou a porta da frente.

- Eu sei que você disse que não precisava, mas eu trouxe alguns doces mesmo assim. – Jessica disse, exibindo a mochila que Yuri acabara de notar.

- Vamos levar isso lá para dentro. Eu já deixei tudo ajeitado, só falta a pipoca. Ninguém merece fria.  

Yuri liderou o caminho, virando à direita rumo a porta que levaria ao seu quarto. Jessica pôde ver a caçula das Kwon no tapete, a encarando. Constrangida, Jessica encarou as costas de Yuri como ponto fixo. Não sabia quando teria que se apresentar a mãe de Yuri, mas não ser de imediato a deixava aliviada.

Quando Yuri abriu a porta do quarto, Jessica notou que era bem parecido com os das adolescentes comuns que via nos seriados de televisão. Pôsteres de artistas e fotos da família e amigas pelas paredes, estrelas fluorescentes espalhadas pelo teto, livros escolares e pelúcias – incluindo o urso estúpido - nas prateleiras. A cama estava impecável, como a de um hotel. Havia um pequeno móvel com uma televisão e um videocassete, com umas fitas espalhadas no chão logo à frente. A estática da televisão e a luz que vazava pelas brechas da cortina eram as únicas coisas que iluminavam o quarto.

- Pode deixar em cima da cama. – Yuri deu espaço para que Jessica passasse e deixasse a bolsa no lugar indicado, enquanto esperava ali na porta.

Quando a Jung retornou, seguiram para a cozinha, que ficava logo em frente à sala, separada apenas por uma bancada. Dessa vez, Gayoon sequer prestou atenção nas duas, a brincadeira estava mais interessante. Yuri retirou dois sacos de pipoca do armário e botou o primeiro deles no micro-ondas.  Após fazer isso, notou que Jessica estava encostada à bancada, mas totalmente focada no que Gayoon fazia com o lego. Yuri podia apostar que Jessica tinha alguma nave de Star Wars montada e em exposição em seu quarto.

- Eu aluguei Allien 3, De volta para o futuro, Ritmo Quente, Robocop, O Iluminado, Blade Runner, porque pareceu algo que você gostaria, e Os Caça Fantasmas. – Yuri citou a longa lista de filmes e Jessica arregalou os olhos por dois motivos. – A gente tem algumas fitas na estante, se não quiser nenhuma dessas.

- Você quer dormir quando o sol estiver nascendo? – Jessica brincou. – Se conseguir dormir depois desses filmes “bonitinhos”. Você não tem cara de quem gosta de terror e essas coisas.

- Está insinuando que eu sou patricinha medrosa? – Yuri indagou e, na cara de pau, Jessica assentiu. Yuri ficou embasbacada.

- Só vou acreditar vendo. – Jessica desafiou com um sorriso e Yuri jurou sentir as pernas tremerem. Por sorte, o apito do micro-ondas a lembrou de que deveria voltar a realidade e colocar o segundo saco de pipoca para estourar.

...

O primeiro filme já havia passado da metade e não havia mais luz do dia que ultrapassasse as cortinas. Estavam ambas lado a lado, na cama de Yuri, com um amontoado de travesseiros almofadando o apoio das costas contra a parede. Yuri alternava seu olhar para frente, onde se encontrava a pequena tevê de tubo, e para Jessica, à sua esquerda, havia algum tempo.

Nunca vira cenas de suspense prenderem alguém como prendiam a Jessica. A Jung mal piscava ao olhar para a televisão com a boca entreaberta. Uma única pipoca estava estre os dedos da mão que pairava sobre o balde, posicionado entre as duas. Como Yuri queria que sua mente se calasse de uma vez por todas ao invés de ficar a lembrando do quanto Jessica podia ser linda e da enorme pena que era a Jung não perceber isso.

Yuri tinha admitido para si, no decorrer da semana, que achava Jessica uma garota atraente. Mas isso não queria dizer que ela se conformava ou via sentido algum naquilo. Tudo certo enxergar algo de atrativo numa garota, não? Falava com as amigas de celebridades lindas o tempo todo. Só não aceitava o fato de, naquele momento, estar tão focada em analisar nem tão discretamente os traços da garota ao seu lado. Desde os olhos marcantes por trás dos óculos, à pontinha arrebitada do nariz aos lábios delicados e queixo.... mordível?

Era com vontades estranhas como essa que Yuri vinha perdendo a paciência e autocontrole, se é que ainda tinha algum. Era incontrolável: se encontrava com Jessica, queria se aproximar; quando se aproximava, queria chegar ainda mais perto; estando perto, queria ao mínimo o contato físico que lhe era possível. Era contra isso que lutava e, se Jessica sequer suspeitasse, a acharia completamente louca, com certeza. Yuri já achava que tinha perdido a cabeça.

De todos os não longínquos relacionamentos que tivera – que não foram mais que dois – era uma garota geek que não saía de sua cabeça. Yuri podia ser lerda, mas não era ingênua. Havia se colocado voluntariamente num buraco, e já havia tanta terra em cima que, sufocada, tinha perdido todas as esperanças de sair dali. Rezava, porém, para que o tempo fosse o seu aliado. Se fosse uma fase de histeria, passaria. Agora, se não fosse, ela não tinha ideia do que fazer...

Seus devaneios pararam no momento em que a porta de seu quarto se abriu. Era a sua mãe, bocejando e aparentemente pronta para se deitar.

- Eu e sua irmã já jantamos, vê se não deixa bagunça na cozinha quando for dormir. Ah, e ofereça algo para a sua amiga se ela estiver com fome. – A mulher deixou o recado e Yuri assentiu de pronto.

- Pode deixar.

- Bom filme, garotas. – A mulher se despediu com um breve sorriso para a visita e Yuri, ainda assustada com a interrupção, só conseguiu dar um estranho sorriso antes que sua mãe fechasse a porta. Demorou mais um segundo ou dois até que conseguisse se dirigir a Jessica diretamente.

- Está com fome? – Perguntou. Jessica negou com a cabeça e enfim se lembrou de levar a pipoca que estava na mão à boca.

- Não depois disso tudo de pipoca. – Yuri riu baixinho da resposta.

- Duas... – Concordou e deu um longo suspiro. – Avise quando estiver.

- Olha, acho que sobrevivemos de pipoca e chocolates por hoje. Tenho balas ainda, também. – Jessica se esticou para pegar a mochila. Do bolso maior tirou uma sacola com os tais doces e a entregou para Yuri.

- Posso? – Yuri pegou a sacola depois que Jessica assentiu para ela. Tirou de lá uma das barras de Snickers. Rasgou a embalagem e fechou os olhos ao dar a primeira mordida. Ouviu uma risadinha de Jessica.

- Garota propaganda perfeita. – Yuri negou a cabeça para o comentário e estendeu a barra para Jessica. – Quer?

Jessica assentiu e se aproximou para morder o chocolate. Foi menos enfática que Yuri e se deliciou sem muito alarde. Yuri teve que controlar o surto interno, por outro lado. Nunca foi sua intenção reparar nos lábios de Jessica enquanto mordia o chocolate e muito menos sentir os próprios formigarem ao pensar na cena.  Por isso, a sua mordida seguinte no chocolate foi cheia de ódio. E aquela história de “garota propaganda perfeita"? Yuri achou que devia pedir seu certificado de louca, pois sua mente criava teorias absurdas.

Mas bastou olhar para como Jessica deitava ao seu lado, virada para si e agarrada a um travesseiro, tendo que olhar por cima dele para ver a tevê, que um sorriso voltou a surgir no rosto da Kwon. Jessica, por sua vez, que percebeu a observação e encarou a Kwon por alguns segundos, os de clima mais estranho de sua vida. Yuri ficou nervosa, achando que seria pega em seu ato, mas Jessica apenas sorriu de volta para ela e cutucou sua cintura, antes de ajeitar os óculos.

- Preste atenção no filme também.

- Eu estou... – Yuri se defendeu. Decidiu, então, deixar o balde de pipocas de lado para também poder se deitar, ainda que terminasse de comer o chocolate.

...

O balde de pipoca se esvaziou, e a sacola de doces foi evaporada após o terceiro filme. Yuri não sabia se ela ou Jessica estavam no pior estado de sono. Por isso, assim que os créditos finais começaram a subir, colocaram todo o lixo em uma sacolinha e desligaram os aparelhos, deixando um abajur a iluminar o quarto.

Foi difícil decidir onde dormiriam. Yuri queria ceder a cama para Jessica, que, por sua vez, insistia não se importar em dormir em um colchonete. Foram minutos perdidos em argumentação até que entrassem em um consenso: dormiriam as duas em colchonetes.

Yuri pediu para que Jessica se ajeitasse para ir para a cama primeiro e, enquanto isso, arrumou dois colchonetes sobre o tapete, próximos da cama, com colchas e travesseiros para cada uma delas. Tirou o lixo do quarto e fez questão de deixar a cozinha do jeitinho que a mãe havia pedido. A mulher nunca ligou de lhe dar esporros mesmo na frente das amigas, e Yuri não pretendia passar essa vergonha na frente de Jessica.

Quando voltou ao quarto, Jessica já guardava as roupas que usava antes em sua mochila. E Yuri jurou que tentou não se admirar, mas era fato que era a primeira vez que via Jessica com algo que não fossem os moletons com o dobro do seu tamanho, e uma das raras em que Jessica prendia o cabelo normalmente solto e nem sempre ajeitados em um coque. Ainda era uma camiseta de manga cumprida, mas era impossível não se atentar ao fato de que Jessica estava de shorts. Yuri justificou a si mesma que era pelo fato de aquilo ser uma raridade que encarou por tanto tempo, e que foi pela surpresa que ela se pôs nervosa e quente. Foi estranhíssimo quando abriu sua boca para falar e a voz simplesmente não saiu.

- Eu vou me arrumar rapidinho e já te faço companhia. – Yuri teve mais sorte na segunda tentativa. Apressada, pegou suas roupas numa cômoda e saiu do quarto, trancando rapidamente a porta ao entrar no banheiro. Deixou os pijamas sobre o mármore da pia e cobriu o rosto com as mãos ao exalar profundamente. Precisava se recompor ou seria a última vez que Jessica toparia uma coisa dessas com ela.

O tempo em que trocou de roupas foi suficiente apenas para que a euforia deixasse o seu corpo. Mas, ao encarar seu reflexo, enquanto escovava os dentes, Yuri dialogava mentalmente com a sua realidade. Não bastava concluir que Jessica mexia consigo, devia aceitar aquilo como fato. E a primeira coisa que sentiu foi medo.

O primeiro deles em relação a Jessica. Duvidava que a Jung sentisse qualquer coisa parecida ainda que sua mente tentasse lhe convencer do contrário, jogando a ela memórias de como as vezes Jessica a olhava de um jeito que a deixava nervosa, distribuía elogios gratuitos que a deixavam sem graça, ou como a outra garota ficava tímida com alguns de seus comentários. Enfim, podia ser apenas uma alucinação.

Em segundo lugar, havia a família e, principalmente, amigas. Como Sooyoung e companhia reagiriam se ela soltasse que talvez, não, que estava nutrindo sentimentos por uma garota? Apenas isso seria motivo para um surto coletivo, imagina se soubessem que tal garota era Jessica Jung? As teorias que iriam inventar, meu deus! Quanto a mãe, bem, Yuri não teria que se preocupar isso se nada acontecesse, mas apenas pensar na possibilidade acelerava o seu ritmo cardíaco como a esteira não o fazia.

Por último, tinha ela própria. Yuri ainda não sabia como reagir diante de tudo aquilo. O fato de estar atraída por Jessica a classificava como...? Era até estranho pensar na palavra. E tinha o seu histórico. Seria mentir que não gostara dos garotos com quem tinha se envolvido, mas, bem, foram bem mais frutos da oportunidade do que algo que partiu primeiro dela. A vontade maior de Yuri era de correr manhosa até a mãe, mas estava na hora de enfrentar seus medos como uma mulher.

Então... o que ela deveria fazer?

Quando voltou ao quarto, Jessica estava deitada e sob a coberta, com as mãos atrás da cabeça e parecendo bastante interessada nas estrelas fluorescentes do teto do quarto, ou apenas estava distante. Yuri inspirou para criar coragem e foi se deitar no colchonete ao lado, ajeitando-se sob as próprias cobertas e arrumando o travesseiro atrás da cabeça.

- Robocop é horrível. – Jessica iniciou o assunto e Yuri riu ao se lembrar do segundo filme que viram naquela noite. Basicamente faziam comentários satíricos do amontoado de cenas que causavam vergonha alheia em qualquer um.

- Eu consigo imaginar que seja o filme favorito do pai de família médio americano. Que nem Rambo.

- Nossa, é pior. É muita testosterona. – Yuri riu do jeito que Jessica franziu o nariz.

- Foi engraçado, pelo menos. Blade Runner que me deu sono. – Yuri comentou, ironicamente após um bocejo.

- Então você não entendeu o filme. – Jessica rebateu.

- Viu? Eu disse que seria bem o seu tipo. – Yuri disse, vitoriosa. – Que nem Star Trek, Guerra nas Estrelas e essas paradas.

- Isso é estereótipo. – Jessica ergueu as sobrancelhas para ela e Yuri fez o mesmo.

- Estou errada? – Yuri sorriu para como Jessica riu baixinho, negando com a cabeça. – E seus pais deixaram você vir sem ficarem muito grilados?

- Eles não ligam muito, só não soltam fogos quando eu digo que sairei com alguém. – Jessica decidiu enfim tirar os óculos, usou a manga da camisa para limpar as lentes e esticou os braços para deixa-lo sobre a cama, logo atrás de si. Yuri não se lembrava de ter visto Jessica sem os óculos antes, e, bem, agora teria dois motivos diferentes para surtar: um fofo, e outro... – Lembra da Soonkyu? Ela foi da escola até o final do ano retrasado.

- Oi? – Yuri se assustou ao despertar do seu estado de transe.

- Lee Soonkyu, uma baixinha... – Vendo que Yuri permanecia sem respostas, Jessica prosseguiu mesmo assim. – Ela ostentava um Nintendinho e um Master System em casa, então eu ia lá de vez em quando...

- Um programa que é a sua cara, honestamente. – Yuri brincou e viu Jessica rir para ela.

- Mas eu gostei do de hoje também. – E lá veio Jessica com um comentário e um sorrisinho que deixaram Yuri mole feito manteiga derretida. Era um misto de vergonha e felicidade que Yuri não sabia onde enfiar a cara, ao mesmo tempo em que fazia ela desejar que a luz do abajur já tivesse sido desligada.

- Então posso te chamar de novo?  - Yuri perguntou e Jessica apenas aquiesceu ao encará-la. Yuri não sustentou o olhar por muito tempo e o desviou ao rir sem graça. E lá vinha o clima estranho de novo... Engoliu em seco antes de prosseguir. – Mas para ser justo, para cada vez que eu for ao fliperama você tem que me acompanhar na academia. – Yuri então se virou para Jessica. Era o momento de convencê-la.

- Esquece. – Jessica negou com a cabeça, convicta.

- Por quê? – Yuri insistiu.

- Eu sou horrível com esportes e você só vai tirar sarro da minha cara.

- Jamais, eu ia te ajudar. – Yuri não conseguia não rir da cara de desconfiada que Jessica que fazia para ela.

- Não posso só ficar olhando?

- Só se isso te deixar entretida. – E saiu no automático, como uma brincadeira que Yuri faria com as amigas, sem pensar. Mas, para as duas, soou tão errado no segundo seguinte... Yuri não teve certeza se ela arregalou os olhos e deixou de respirar primeiro ou se foi Jessica. Só sabia que Jessica ficara vermelha como um pimentão e era bem possível que ela estivesse do mesmo jeito. Como ela conseguia ser tão estúpida...

- E se deixar...? – No momento que Yuri abriu a boca para se desculpar, se viu sem voz novamente. A pergunta de Jessica saiu num fio de voz, mas ela ouviu. Yuri ouvia tudo, inclusive o seu coração batendo forte até dentro de seu cérebro. Ficou sem saber o que dizer. Era brincadeira e devia rir, certo? Não devia pensar naquilo como indireta, quem ela achava que era? A deixava ainda mais travada a forma como os olhos de Jessica não deixavam seu rosto de jeito nenhum, e era ainda pior acompanhá-los.

- Então, tudo bem. – A decisão de Yuri foi inconsciente, ambígua. Não se sentia segura de nada, entretanto, ainda mais estando tão focada no sorrisinho discreto de Jessica.

Ao mesmo tempo que seu coração bombeava sangue feito um louco, Yuri tinha a impressão de que seu cérebro não estava oxigenando direito, pois tudo parecia alucinação. Seus lábios voltaram a formigar e mordê-los numa tentativa de conter a sensação não foi uma escolha esperta, pois atraiu para eles o olhar de Jessica.

Yuri sabia que dificilmente teria a mesma oportunidade tão em breve, ou estaria tão pouco racional para ceder a sua curiosidade. Foi, ainda que hesitante, se aproximando de Jessica, e ao vê-la apenas seguir os seus movimentos com os olhos, quase os fechando, não houve em Yuri força que a convencesse de se afastar. Inspirou profundamente e fechou os olhos ao juntar seus lábios aos de Jessica.

Poderia comparar a sensação como se fogos de artifício explodissem em seu peito, tanto que podia enxergar as luzes mesmo de olhos fechados. Os lábios de Jessica eram macios e delicados como pareciam ser, e se encaixavam tão bem contra os seus que Yuri só teve real noção do quão bom os beijos poderiam ser quando, recuperada do próprio surto interno, Jessica passou a movimentar também os lábios contra os dela.

Se Yuri interrompeu o beijo por um segundo, atrás da reação de Jessica, não foi por muito tempo. O estado de transe em que a Jung parecia se encontrar, sem tirar a atenção de seus lábios, não permitiu que Yuri resistisse por muito tempo a sensação de juntá-los novamente. Dessa vez mais ousada, erguendo seu corpo para poder aprofundar o beijo, a mão direita seguindo lenta e discretamente pelo abdômen da Jung até se firmar em sua cintura. E, novamente, quando Jessica passou a corresponder a cada movimento seu, foi como se Yuri conseguisse revirar os olhos mesmo com as pálpebras fechadas.

Seria cliché demais dizer que nunca se sentira tão afetada por um beijo, mas era essa a verdade com a qual Yuri tinha de lidar no momento. Algo muito grave teria que acontecer para que se arrependesse de um beijo daqueles pois, no momento em que sentiu a mão hesitante de Jessica tocando sua nuca, seu peito se inflou numa confiança desmedida.

Yuri ainda não sabia como seria depois, mas, no momento, nenhuma das duas parecia ter a intenção de conversar sobre qualquer coisa. Não foi um único beijo que trocaram e, à medida que se sucediam, Yuri sentia mais necessidade de prosseguir com eles, quase que como um vício recém-descoberto. Era quase hipnotizante poder ouvir os suspiros de Jessica, sentir o peito se erguer contra o seu em meio a respiração pesada. Yuri sabia que tipo de reações aquilo despertava em seu corpo, mas escutar a razão e o próprio medo se encontrava difícil naquele estado.

 E saber que era o motivo de cada reação involuntária de Jessica era o que seus hormônios precisavam para silenciarem de vez os gritos de alerta de seu cérebro sobre quaisquer consequências. Seu corpo pedia pelo outro e ela atendeu, se aproximando tanto quanto podia e entrelaçando suas pernas às da outra garota. Suas mãos tremiam levemente, curiosas, e Yuri permitiu que explorassem as coxas e cintura de Jessica, passando sob o fino pano da camisa em busca da suavidade da pele, acariciando o quadril, desde as costelas até onde o elástico dos shorts lhe permitia.

A última gota de sanidade se esvaiu quando, por firmar as mãos em uma das coxas da Jung com força desnecessária a um ato inocente, Jessica mussitou seu prazer em um gemido abafado. O que certamente pegou ambas de surpresa, mas, mesmo trocando olhares tímidos, havia consentimento e entendimento mútuo neles. Sabiam que, depois do beijo que trocaram em seguida, não haveria mais volta, em muitos sentidos.

...

Se havia uma coisa que custava a Tiffany entender, foi como elas deixaram Yuri se afastar cada vez mais ao ponto de trocá-las por ninguém mais e ninguém menos do que Jessica Jung. Não é como que se importasse de saber de todos os detalhes, também, mas seria mentira dizer que não custou ao grupo indignação para entender como aquilo fora possível. A mágoa não durou muito, porém. Seguiriam seus próprios caminhos ao fim do ano letivo e Yuri só foi a primeira a encontrar o seu. Por isso, em um fim de tarde, após as aulas, ainda agrupada com Taeyeon e Sooyoung próximas ao portão principal, Tiffany observava Jessica sem o ranço que sentira antes. Até lhe arrancou um sorriso saber com certeza quem Jessica aguardava ali, na calçada. Não havia nada no comportamento da Jung que a denunciasse, era Yuri quem vinha agindo como uma legítima boba alegre de uns tempos para cá. E, por mais bizarro que fosse, aquilo não surpreendia a Hwang nem um pouco.

E Jessica, que olhava para o horizonte à espera da Kwon, tomou um susto quando um vermelho parou na sua frente e buzinou para ela. Abaixou-se para reclamar para o que certamente seria o comportamento de algum garoto idiota, porém ver o sorriso de orelha a orelha da namorada a deixou ainda mais indignada.

- Ahn... O que diabos é isso?

- Minha mãe me emprestou o carro. – Yuri justificou, sem desfazer o sorriso.

- Para quê? – Jessica franziu o nariz e ajeitou a armação dos óculos, num daqueles pequenos gestos que Yuri adorava observar.

- Porque eu vou te levar num fliperama legal que tem em Santa Mônica e depois a gente vai encher a cara de pizza. – Jessica se surpreendeu tanto com o plano quanto com as portas sendo destravadas. – Entra logo!

- Tá, calma! – Jessica abriu a porta, diante de tamanha exaltação e desespero da outra e deixou a mochila aos pés, após fechar a porta. – Desde quando você sabe de fliperamas em Santa Mônica?

- Desde que eu presto atenção no que você fala e gosto de fazer surpresas. – Apesar da posse confiante, com uma mão no volante e outra apoiando a cabeça, Yuri tinha no rosto aquele sorriso bobo que dava a Jessica vontade de rir. – Se não quiser, minha mãe vai ter que fazer o turno da noite e Gayoon está com meus avós, então...

- Fliperama? – Jessica ergueu uma das sobrancelhas para ela e Yuri ficou surpresa por não ter levado um tapa. Riu, sem vergonha alguma, e girou a chave do carro. Ainda que o motor tivesse soado na mesma hora, pôde ouvir o sussurro de Jessica. – Idiota.

- Game over para mim. – Imitando um narrador de arcade, Yuri dramatizou o próprio e falso desapontamento, conseguindo uma risadinha de Jessica para ela. Estava feliz, com certeza, pois havia apostado todas as suas fichas no momento certo.

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Comments

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Jouhmi #1
Ícone acessível! Obrigada por ter postado aqui, caso contrário eu provavelmente jamais teria ficado sabendo dessa fic incrível <3
Keichan13 #2
Chapter 1: Thankssssss I had to use Chrome to translate it but I was so happy to read this!
L0bertor
#3
Enfim a rainha multiplataformas espalhando a palavra.