Balas de Gelatina

Sonata
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Nas mãos haviam mais calos do que propriamente dedos. Entretanto suas mãos soavam tão leves e delicadas, a cada tecla tocada, era como se pisasse em uma nuvem e lentamente afundasse o pé nela, era frio e úmido, como uma chuva e ventania.

 

As horas perdidas naquele modesto teatro lhe renderam inúmeros prêmios, diversas medalhas, incontáveis apertos de mão. Horas passadas em solidão, eterna, com seu único e fiel amigo de teclas duras e som macio.

 

Seus antigos amigos de colégio lhe diziam que era perda de tempo, que ele deveria viver, mas o que era viver? Viver era poder sentar naquele desconfortável banco de madeira escura, com um estofado vermelho, todos os dias e tocar. Tocar até que nada mais passasse pelo pensamento além das melodias e notas flutuantes.

 

Partituras já não mais eram necessárias, já conhecia toda música que lhe interessava, e as que não lhe interessava apenas esquecia com o tempo. Não prendia-se mais a notas, mas sim aos sons, sabia reconhecê-los, sabia saboreá-los como se fossem um caro vinho.

 

Tinha fama, dinheiro, prestígio, honra, mas já não tinha mais família ou amigos. Não que isso fosse algum problema, não, de forma alguma. Era um benefício. Em sua vida era apenas Kyungsoo e seu piano, além também de seu amante, o piano daquele teatro. O primeiro que tocou quando na presença de um público, que abandonou quando precisou mudar seu caminho para muito mais longe do que um bairro ou cidade, mas aquele para que em todo momento de maior tormenta procurava, para aliviar suas dores e transformá-las em arte.

 

►  

 

Seus dedos deslizavam pelas teclas, o rosto que não continha nenhuma emoção sequer, mas a música que expressava tudo. Através do piano conseguia mostrar, todo o vazio que segurava em seu peito. Seus dedos continuaram e pela mente tanta coisa correu, lembrou-se dos pais.

O pai que dominava aquele instrumento com igual maestria, a mãe que lhe acompanhava com o violino. Os dois formavam uma combinação perfeita de sorrisos e sons. E o pequenino Kyungsoo apenas os observava, sentado ao lado do pai, guardava na memória infantil as notas que ele tocava, a forma como colocava as mãos, toda aquela delicadeza.

 

Tudo em seus pensamentos era branco, não havia espaço para cores escuras, para tons sombrios. Qualquer pensamento ruim parecia ser eliminando pelo doce som daquela música. Suas lágrimas salgadas misturaram-se aos dedos, mesmo que em seu rosto nenhuma expressão houvesse mudado, coração que implorava para expulsar aqueles sentimentos de alguma forma. Não entendia, mesmo depois de tanto tempo, como duas pessoas tão angelicais podiam ter sido arrancadas de seus braços quando ainda tão jovem.

Tão jovem de ter apelar àquele dueto como lembrança, nada mais.

 

 

 

Parou de tocar, mas era como se a música tivesse continuado no ar, como se ainda ecoasse, quase como se seu espírito ainda estivesse tocando, mas seu corpo não. As mãos foram para os cabelos negros, curtos e bem arrumados. Não eram difíceis de estarem arrumados, afinal eram tão lisos que ficavam no lugar certo sem nem mesmo precisar penteá-los. Tinha uma curta franja, que lhe tocava de leve as sobrancelhas, deixando seus tristes grandes olhos mais evidentes.

 

Com a mão direita subiu a manga do casaco e encarou o relógio em seu pulso, já eram quase quatro horas da tarde e ainda não havia comido nada. Seu estômago não exatamente reclamava, mas fazia alguns barulhos levemente distrativos. Levantou-se, fechou o piano, passou a mão pela madeira negra dele como se dissesse até logo e saiu de cima do palco, apressado, deixando as luzes acesas para que o zelador do local as apagasse mais tarde.

 

Assim que apressadamente abriu a porta do modesto e esquecido teatro sentiu o choque. O barulho da rua lhe era enlouquecedor, não sabia como uma pessoa normal poderia viver uma vida inteira em um lugar tão barulhento, por isso havia se mudado para longe, para se isolar do barulho e caos do dia a dia daquela cidade e viver tranquilamente apenas ao som da brisa e dos pássaros.

 

Seu empresário, Junmyeon, costumava dizer à Kyungsoo que ele encarasse os barulhos da Seul como animais. As motos seriam pássaros, os carros seriam lobos e os outros veículos seriam outros animais da floresta ou do campo. Claramente achava aquilo tudo ridículo, mas nunca iria admitir que tentava se forçar a ver as coisas daquela forma, ao menos até chegar a seu pequenino apartamento.

 

 

Era em uma escura rua, afastada do centro barulhento, uma pequena cobertura silenciosa que ele havia comprado com parte da herança de seus pais assim que completara a maioridade. Assim que entrara em casa tomou suas providências comuns. Retirou os sapatos molhados da chuva que restava pela cidade, jogou o casaco em qualquer canto, as chaves dentro de um pote de vidro sobre o balcão da cozinha, e o corpo contra o sofá.

 

Conseguiu alcançar sobre a mesa de centro um pequenino controle remoto que usou para ligar seu aparelho de som, colocado em volume ideal, sempre começava de onde ele havia parado, em sua assustadoramente extensa coleção de peças clássicas.

 

 

►  

 

 

Percebeu que sua casa talvez precisasse de uma boa limpeza, não que ele fosse desorganizado (exceto pela mania de deixar os casacos jogados pelo chão), mas não tinha costume de limpar os móveis, e talvez isso fosse preciso se levasse em conta a espessa camada de poeira depositada sobre eles. Era como se ninguém estivesse morando naquela casa a meses, sendo que Kyungsoo já estava lá a quase um ano.

 

Um silencioso ano, apenas duas apresentações foram feitas nesse período, não por falta de demanda, mas por falta de vontade. Isto enlouquecia Junmyeon, que vivia lhe implorando para que fizesse mais concertos, e ele não aceitava. Os dois que não pôde resistir foram tocar à presidente em um festival e em um concerto beneficente do qual não recebeu nenhum tostão, mas sentiu-se mais aliviado com o que restava de sua alma.

 

 

Junmyeon sempre dizia “Se não quer tocar, porque voltou?” mas esta era uma pergunta que nem mesmo ele poderia responder, ninguém poderia. Porque não havia resposta. Voltou porque algo lhe disse pra o fazer, podia até mesmo jurar que este algo era a voz de sua falecida mãe, mas não saberia ao certo por não lembrar-se de sua voz.

 

Diziam que era lindíssima, e que ele havia herdado isto dela. Sua família tinha o dom da música por muitas e muitas gerações. Sem nem ao mesmo querer acabavam casando-se com outros músicos, o que acabava por gerar mais músicos e assim por diante. Kyungsoo não era o único jovem de sua família, havia um primo, Yixing, filho de sua tia com um violinista chinês. Seu primo além de desenvolvido atleticamente dominava também a arte familiar.

 

Muitos diziam que eram como um clã. Kyungsoo até achava aquilo engraçado, um clã de cigarras que perambulavam pelo mundo atrás de ganhar corações com sua bela música. Era um tanto quanto poético e cativante. Ele gostava de pensar assim, mas se ao menos fossem unidos como os de um clã.

 

Se ao menos fossem unidos de qualquer jeito.

 

 

 

A chuva começou a cair, já não bastava estar frio, deveria chover.

Este era o outono, a época da melancolia romântica. Ele pensou que talvez fosse hora de juntar comida para hibernar durante o inverno. Não pretendia sair de casa durante a estação mais fria, era desnecessário e inútil. A não ser que precisasse comprar papel higiênico ou alguma guloseima, não sairia de casa naquele período.

 

Seu agente nem mesmo ligava mais para ele durante o inverno, sabia que era inútil tentar convencê-lo de qualquer coisa durante aquele tempo. Apenas aparecia de surpresa algumas vezes para ter certeza que o outro não havia morrido de frio ou fome (ou se matado).

 

Uma vontade súbita, de levantar-se e ir ao mercado. Aquela vontade apossou o corpo e  fez levantar, um tanto quanto animado. Foi atrás de seu casaco, chaves e carteira, calçou seus ainda um pouco úmidos sapatos e saiu de casa. Olhou para a chuva que caía e pegou um dos guarda-chuvas que deixava do lado de fora da casa, o abriu e acelerou seus passos pelas escadas que desciam o lado exterior do pequeno e modesto prédio até a rua, por onde correu em disparada até chegar em algum lugar mais movimentado.

 

 

Já estava a escurecer, não sabia se era seguro andar por aí naquele horário. Nem sabia o que iria comprar no mercado, talvez nem fosse comprar nada, apenas olhar as prateleiras atrás de algo que chamasse a atenção de seu olhar monótono. Chegou mais rápido do que pensava no estabelecimento, entrou e ensacou o guarda-chuva e entrou na loja. Não havia muita gente lá, mesmo sendo um grande mercado, àquela hora talvez não fosse a de mais movimento.

 

Tocava ao fundo uma leve bossa nova, sem vozes, apenas um doce piano acompanhado de um violão preguiçoso.

 

Era o momento ideal para Kyungsoo passear lentamente pelos corredores, segurando casualmente uma cesta vermelha que havia de pôr os itens que desejasse comprar. Começou pela secção das bebidas, sentiu uma vontade intensa de comprar algumas das coisas mais fortes que podia enxergar, embebedar-se sozinho em casa não seria nada mal, preferia isso ao ter que acidentalmente desmaiar no meio da rua depois de beber em excesso em algum bar.

 

Estava tudo tão caro. Não que ele tivesse algum problema financeiro, mas não gostava de gastar dinheiro em vão. Optou por levar apenas duas garrafas, uma de soju e outra de whisky, a de whisky provavelmente iria apenas enfeitar alguma prateleira, a de soju seria devidamente consumida assim que chegasse em casa.

 

As batatas lhe pareciam atrativas, foi atrás de um saco delas e jogou-as no cesto. Colocou sua mão livre no bolso da frente da calça e continuou a andar, sem vontade de comprar mais nada, até que se lembrou que aquele mercado possuía um enorme setor de doces, apertou o passo e foi até ele, encarando lentamente uma grande prateleira cheia de balas de gelatina. Procurava suas preferidas, mas não parecia encontrar com o olhar.

 

Algo chocou-se contra seu corpo.

 

Alguém.

 

Parecia apressado, agora caído no chão, tinha uma cesta consigo e todas suas compras pareciam espalhadas. O rapaz tinha os olhos fechados, sentado no chão com os cabelos castanhos jogados sobre os olhos, parecia reclamar baixo.

 

 –“Está doido? Até parece que é-” – “Cego?”

 

Kyungsoo observou enquanto o rapaz de complexão ensolarada tateava o ch

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Comments

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Dahlia_ #1
Chapter 1: Lendo novamente <3 Acho que é a décima vez ... Com certeza a melhor fic!
keydemons
#2
É tão bom que esteja migrando cá pro AFF! Eu com certeza prefiro a organização de fanfics daqui. Desejo muitos comentários em Sonata tanto aqui quanto no Wattpad. Com certeza uma das melhores fanfic Kaisoo em Português! Lots of love <3